05/05/09

Ariel - Capítulo I

Tinha bebido imenso, bagaço, vinho tinto, aguardente velha, eu sei lá! Sentia-me perdido, sim, um tanto ou quanto fora de mim, confesso; contudo, sabia que a noite não iria morrer assim, não, hoje não, muito obrigado. Tinha encontrado uma mulher que me agradava: ruiva, alta, esguia, uns perfurantes e felinos olhos verdes capazes de me atravessar o corpo e desvendar as torpes e abjectas intenções que se me aconchegavam no espírito. Isso excitava-me. Sem sombra de dúvida, excitava-me. Não só me excitava, como me incitava a pôr freio à bebedeira e me obrigava a manter a consciência intacta, muito embora sentisse que o meu crânio era feito de porcelana, pronto a estilhaçar-se ao primeiro impacto.

O passar do tempo tornava cada vez mais doloroso manter os olhos abertos. Hm… permiti aos músculos descontraírem sobre o assento esponjoso e rasgado da velha carcaça do Hel. C'os diabos! Que fazia eu na carripana do Hel?, sem direcção assistida, estofos rasgados, cheio de fuligem, ar condicionado inexistente, libertando uma chiadeira horripilante sempre que encostava o pé ao travão? Liguei o rádio - na esperança de apanhar uma velha toada que assaltara a rádio nos anos 70 e que ainda hoje perdurava. Como era mesmo? «It’s gonna be a bright, bright sunshiny day»? Uma merda do género. Por alguma razão ao qual era alheio, agradava-me - e, como é óbvio, o menino Hel não cuidara de manter o correcto funcionamento do seu rádio (pelo menos isso, Hel, porra!). Pois, o traste conduzia o meu carro, o meu R6, novo, cheiroso, apetrechado dos mais brilhantes botões e obscuras funções, que eu seguia, de momento. E, no banco de trás, ia a ruiva, beijando-lhe o pescoço, despindo-se para gáudio do espelho retrovisor, acariciando-o. «Hel, meu sacana, és mais esperto do que pareces!» Estranhamente, no lugar da recordação em que decidíramos, pelos vistos, trocar de carro, numa troca em que saíra claramente a perder, encontrava-se o vácuo.

Recapitulei então os eventos dessa noite: o bar, a loira, o Hel, a ruiva, tudo acontecimentos que não eram de somenos importância e todos eles intercalados pela bebida adequada. A minha mente assemelhava-se a um novelo enrodilhado e sentia que só agora começava a desfazer os nós. Ainda assim, havia ainda muitos por desfazer. Que se seguira?, hm… pois… o Hel desaparecera, no bar, deixara-me a sós com a miúda, a ruiva, com os seus lábios vermelhos e apetecíveis, que apetecia ter beijado logo ali, assim mesmo, de chofre, no momento, e as pernas cruzadas, as coxas roçando uma na outra, num convite quase insidioso; saí com ela do bar, em direcção ao R6, o Hel lá apareceu, com o R7 e, com ela, partimos para a casa do meu amigo, perdida num matagal verdejante mesmo na intersecção que dá para a serra de Sintra e agora ali estava eu, numa cama que desconhecia, lençóis de flanela, em casa do Hel, à espera talvez duma sua prima afastada, retida quando a noite não passava duma ilusão feita de sombras estranhas que me enevoavam a razão e ao mesmo tempo me faziam sentir no íntimo que aquela era uma noite de resoluções de vida e de morte, até para prima ausente - à medida que fazia o R7 do Hel galgar quilómetros a fio na auto-estrada de Lisboa para Cascais.

04/05/09

Ariel - Capítulo II

Estacionei o R6 no 24 horas de serviço, puxei o travão de mão, suave, silencioso, e passei os olhos pelo espelho retrovisor como quem não quer a coisa, de forma casual. O meu olhar não se cruzou com o dela. Apanhei-a com os dedos longos a cobrir os lábios, contendo um discreto bocejo. Desviei o olhar ao ouvir a chiadeira típica dos travões do meu R7; às quatro da manhã, na auto-estrada vazia, o som ecoou como unhas a arranhar um quadro numa sala vazia. Lúcio estacionou a meu lado, o escape alucinado de fumo e cheiro a óleo queimado. Saiu do carro e, numa passada larga e confiante, dirigiu-se à estação. Segui-o com o olhar. Ao voltar, assomou à janela do pendura e, tirando o cigarro dos lábios, repreendeu-me, ríspido, mas condescendente, por entre uma nuvem de fumo, com um sorriso trocista nos lábios finos (sabia bem que eu era um teso), que devia tratar melhor o meu carro, que devia «tratá-lo como a uma mulher bonita». Rimos os dois e Lúcio virou o pescoço da janela para o banco de trás, querendo certificar-se do estado de espírito da nossa convidada. Parecia pensativo enquanto a observava. Decidi interromper as suas cogitações perguntando-lhe o que tinha vindo fazer aqui. Refrescos, disse-me, tínhamos de comprar refrescos. Abriu a porta do R6 e sentou-se a meu lado. «Esqueci-me do teu iced tea. Queres que te traga um?», perguntou, mordaz, rindo, desenfreado, e arrastando-me para o seu frenesi de gargalhadas. Às tantas, até a ruiva fora contagiada pelo nosso humor, o seu riso entrelaçando-se com o nosso.

Entre as ilusões e as certezas de que abarrotava o suposto diálogo que com ele mantinha, ao mesmo tempo que o meu pé descansava no acelerador como se a minha existência disso dependesse, entre duas passas num cigarro artesanal enrolado por mim e meia dúzia de conselhos fraternais dele, a conversa, a animação e a camaradagem jorravam como se do R7 imanasse um afluente no rio da nossa parvoíce imberbe mas sincera, como se a rapariga que ele insistira em trazer connosco fizesse também parte de um papel maior no desígnio máximo das coisas; e foi assim que me pisou o pé, abruptamente, fazendo com que o ruído do motor acelerasse toda a estação de serviço até os três de nós nos rirmos como crianças à solta na vida que era aquela estrada até minha casa, onde eu tinha os meus próprios planos para a miúda que se espraiava em tons de preguiça indulgente no banco de trás do R6.

Mal sabia eu que a noite ainda reservava surpresas, sobretudo a maior de todas e não a que apenas acabava de me confrontar com os seus sequiosos lábios vermelhos e os seus grandes olhos verdes, tentadores, brilhando por entre a melena de fogo que lhe afagava o rosto de seda, enquanto o meu grande amigo, na sua demência alcoólica, ainda discursava, crente em fidelidades igrejas e códigos de honra ultrapassados, mas não para todos, talvez.

Quem sabe se não seria a última vez que me encontrava com ele, mas, fosse como fosse, valia a pena. Era ela. Sim, era ela. A ruiva que nos acompanhava. A mulher com quem iria ser feliz. Sim, era com ela. Só tinha de encontrar maneira de me livrar do Lúcio.

03/05/09

Ariel - Capítulo III

Abandonei o devaneio de morte e felicidade em que me lançara na estação de serviço e, arrancado de volta à realidade, com uma mão no estômago e com a outra sobre a boca, soltei um sonoro arroto. Após um silêncio de espanto face à minha repulsiva manifestação estomacal os meus dois companheiros riram-se de novo, ruidosamente, talvez que ruidosamente a mais.
No banco de trás, na minha nuca, a pensar, sabia-o, encontravam-se aqueles dois olhos verdes, despertos e húmidos, acompanhados dum riso subitamente quase que infantil em demasia. Sentia isso perfeitamente. Ria-me também mas algo mudara. Fora como se se tivesse criado, a dado passo da nossa jornada desde Lisboa, um clima diferente, um pouco como se estivéssemos a fingir o nosso real estado de embriaguez, embora eu continuasse bêbado dos pés à cabeça e assim desejasse permanecer, sentia que algo mudara. Fora a miúda da bomba. O café e também o “refrigerante”, com uma acidez um pouco acima de 40 graus, fora isso.
Aquela história começava a assustar-me. Estava muito bêbado e algo não batia certo, a começar na porcaria de chaço que tivera o desprazer de conduzir nos últimos quarenta quilómetros e a terminar naquele parceira bizarra de olhos verdes e cabelo ruivo no banco de trás do meu carro. No banco de trás do meu R6, da minha viatura confortável, segura e imbuída do glamour necessário à prossecução das minhas capacidades no que respeitava ao burocraticamente burlesco das actividades que desempenhava, zelosamente, no Ministério; havia algo naquela rapariga que não batia certo.
O que era? Já sabia. O meu pai não aprovaria. Não falo da bebedeira. Nem sequer da troca do carro. Oferecera-me o carro e jamais admitiria questionar o destino que pudesse dar aos seus presentes. O meu pai era e é assim. Mas não aprovaria. Uma puta estava no meu carro, à frente da bagageira, fria, na minha nuca, à frente dos documentos, não se assumindo como o que era. Sim, de todo o velhote aprovaria. Quanto mais não fosse… Ali havia gata. Dei mais um longo gole na garrafita de que me munira com a menina do balcão, já essa era mais gatinha, a miúda, bem bonita por sinal, mulata, da minha altura, peso aproximado, e fitei o Hel, perpendiculando-me provocatoriamente em relação à ruiva, enquanto aproveitava para lhe cravar lume, arrogante, em tudo displicente no meu gesto silencioso com que o cigarro cortava a atmosfera embaciada do R6 e o chaço do Hel mesmo atrás a fazer sombra. Ela nem tugiu nem mugiu, surripiou um isqueiro de grife da sua maleta, só agora reparava que trazia uma maleta, grená, e sorriu, cúmplice, à medida que me acendia o cigarro. Que linda que era. Linda.
Hmm, reflecti. Dei outro gole ainda mais longo e disse, finalmente, para quebrar o gelo que sentia num outro rosto que se perpendiculava um tudo ou nada torpe, um tudo ou nada resistente, mesmo à minha frente: Bom, menino, acorda rapaz, vamos trocar de carro como deve ser e é de direito?.. O Hel não gostou da sugestão, vi logo que não lhe agradava e, glauco, sem lhe permitir hesitações, passei-lhe a garrafa para as unhas. Tirou-lhe a rolha, bebeu, generoso, sem medo e o acelerador voltou a soar, desta feita um tudo ou nada amantigado, essa era a palavra, sibilando por entre os corredores das bombas de gasolina da estação de serviço até se lhe esmoerem os arroubos de gasolina ao encontro ao vidro da menina do balcão, mulata.
Eu sorri, feliz, arranquei-lhe a garrafa e passeia-a à ruiva, só para ver melhor o filme dela; daquela falsa puta ruiva. Que cabra. Bebe, disse-lhe. Crivou-me os olhos entre o nariz, furiosa, por certo, desarrolhou e enfiou o gargalo na boca, até o Hel ficou tonto, até a garrafa ter sido despejada.
Topei o Securitas ao canto da estação a franzir o sobrolho e gostei ainda menos da maneira como as coisas se estavam a desenrolar. Era o momento de fazer alguma coisa e dei mais um gole: “Mexe-te, anda, vamos trocar de carro, ias batendo lá atrás, lamento, volta para a tua chocolateira."
Então, com um sorrisinho escarninho, entre dentes, acrescentei: “Podes levá-la, isso, leva-a, leva-a contigo, otário!..” confiante de que, pelo menos por enquanto, restabelecera a minha supremacia sobre o esquema geral dos coisas e sobre a minha amizade com o Hel em particular. Afinal de contas, eu e ele éramos amigos, long time, e ser amigo também é não abusar. É como esboçar um não o faças e isso juntava-se à equação do meu novo veículo que o meu pai me oferecera e… Compreendem. Coisas de documentos. Os documentos eram importantes. “Lúcio, porque é que não te calas?” falou a puta.
Miravam-me e ao meu companheiro, promissores e convidativos, os seus olhos verdes, e os seus lábios de púrpura seda sanguinolenta desenhavam-se num sorriso de parvoíce completa, relaxada... Que puta tão bela, estaria embriagada? Talvez não passasse de um desejo inflamado pelo álcool, pelo meu álcool, comprado com o meu dinheiro, nos meus bancos do meu R6 de cabedal; “Dá-me lume amor, dá-me lume”, replicou, no gozo, a gozar o prato como se fosse a primeira vez.
Sim, dou-te. Sim, dás-mo, ele ri-se de ti e do teu carro. Sim, tu ainda te ris mais de nós os três. És um tonto, Lúcio. Sou? Tu é que és uma tonta, uma desvairada, Ariel, cuspi para o Hel, recordando-me do seu nome.
Parecíamos três fedelhos, quando bati com a porta do meu carro e me encaminhei decidido para a deprimente chocolateira dele (céus, como era capaz de conduzir tal desastre), mas eu, pelo menos, desejava algo mais naquela noite, noite de estrelas e de medo, inexoravelmente, involuntariamente, eu queria mais, mais. Queria mais. Queria a mulher, ponto e dei a chave e o motor pegou. Rouco a princípio. Regular, depois. O Hel deu à chave no R6. A ruiva, a tesão rubra que ela me havia provocado, deitou-se fora da visão no banco de trás. E, se bem conhecia o meu caro Hel, não estava sozinho na minha ânsia. Fosse como fosse, decidira que a noite não seria de partilhas, de algum modo, era matar ou morrer, ou melhor, conduzir até à quinta dele.

02/05/09

Ariel - Capítulo IV

Lúcio bateu com a porta do R6, quiçá mudando de ideias quanto a voltar para o seu carro, e, decidido, encaminhou-se para o meu bólide, pesado e roufenho. Deu à chave e o velho R7 reagiu, rouco, a princípio, regular, depois. Fiquei a observá-lo, por instantes, distraído, constatando que o bate boca entre a miúda e o Lúcio parecera ter ultrapassado a sadia troca de galhardetes e se transformara numa rivalidade acirrada pela susceptibilidade que o álcool instala nos espíritos dos homens. Hm, reflecti. Azar. Conhecia bem o Lúcio e, apesar desta sua tirada com a ruiva, - com Ariel, como fizera questão de frisar, com os olhos faiscando no meio da esclerótica vermelha, - apesar disso, conhecia o meu amigo e sabia que não estava verdadeiramente zangado, não a sério, nem comigo, nem com ela, embora percebesse que uma qualquer dúvida ou frustração se lhe anichara no cérebro, provavelmente, instilada pelo álcool e ainda a fermentar. Tal agressividade denotava uma clara insegurança em relação a esta situação. Seguramente, não lhe agradava o facto de eu, apesar de ser seu amigo de longa data, ter assumido os comandos do R6, considerando que não estava menos bêbedo do que ele. Um longo buzinão despertou-me das minhas reflexões. Que raio!, passara o dia, desde que chegara ao bar, em cogitações supérfluas e de todo desinteressantes. Estava na hora de agir, sim, de agir!

Pelo retrovisor, vi o Lúcio gesticulando com uma das mãos, fazendo-me sinal para arrancar à sua frente. Acenei, dando a entender que percebera, dei à chave e… reparei que Lúcio esquecera a garrafinha do “iced tea” no banco do pendura. Sedento, antes de arrancar, estendi o braço e fechei os dedos sôfregos sobre o vidro frio. Levei a garrafa à boca, mas somente umas míseras gotas esquecidas no fundo saudaram a minha garganta. Desgostoso, engatei a primeira com suavidade e deixei o pé cair, delicado, sobre o acelerador. O carro ronronou de satisfação e deslizou, ligeiro e ágil, sobre o asfalto bruto.

A viagem continuou em silêncio. A ruiva não dava o ar da sua graça e pensei, por fugazes instantes, que tivesse amuado com qualquer coisa. Cedo a sua inércia, no banco de trás do carro, me revelou que fechara os olhos por breves instantes e que caíra num profundo sono passageiro, talvez sem sonhos ou ânsias de nada. O sono escondera o verde frio dos olhos da nossa companheira e o seu cabelo espraiava-se em madeixas de fogo encaracoladas sobre o seu rosto, pintando o banco do R6 em matizes de vermelho, o peito trabalhando lentamente, subindo e descendo, à medida que o ar lhe invadia os pulmões e se escapulia pelos lábios vermelhos. Não estava surpreso; afinal, depois de quase ter despejado a garrafa de um só gole… Melhor assim. Dava-me tempo de pôr a cabeça em ordem. Aquela última aguardente deixara-me de rastos. A última, é sempre a última antes da próxima. Agora, estava na hora de apelar a um último sopro de organização mental, sim, tinha de envidar todos os esforços nesse sentido. Afinal, a minha casa ainda ficava a uns bons quilómetros e a auto-estrada desenrolava-se como uma infindável passadeira negra que me conduzia a um fim indeterminado, engolido pela noite que nos envolvia. Na minha esteira, os faróis do R7 mantinham o seu olhar amarelado em cima de mim, implacável, inalterável, sempre na minha esteira. Liguei o pisca para sair da auto-estrada e espreitei o Lúcio. Apercebi-me de que não seguia o meu exemplo e veio-me à memória, de forma quase involuntária, que tinha um dos piscas avariados, possivelmente aquele contra o qual o Lúcio praguejava neste preciso instante.

O carro galopou os últimos quilómetros num piscar de olhos e cedo me familiarizei com os meus arredores, agora condunzindo quase em piloto automático. Avistei a entrada. Por um momento, julguei que o Lúcio não conseguiria, mas não há mais rijo do que ele e não há aguardente que o derrube. Afinal, parece que o R6, com a sua direcção assistida, travões ABS, GPS e sei lá mais que siglas ocultas, ainda não tinha amolecido o meu amigo, que ainda há poucos anos me levava por essa noite lisboeta, numa carripana em tão mau estado como a minha, a beber copos e a conhecer miúdas. Nostálgico, constatei que a nossa rotina não mudara assim tanto. Hm… talvez não em tão mau estado.

Galguei a pequena estrada de terra que dava para a minha quinta e estacionei, longe de possíveis olhares indiscretos. Virei-me para trás. Ariel dormia profundamente, mas sentia que, ao mínimo encorajamento, o seu cabelo de fogo estaria pronto para dançar para nós… para mim. Até dava pena acordá-la… «Ó, Hel, estás a dormir de olhos abertos, meu? ‘Tás bem?» Lúcio estacionara a meu lado e o barulho que fez ao quase arrancar o travão de mão sobressaltou-me e afastou o meu olhar basbaque do calor que o corpo no banco de trás emanava, numa calma pronta a explodir. «Eu... não, estou bem, é aqui, chegámos. Temos de a acordar.» «Ya… pois tens. Eu tenho de ir ali num instantinho». Mirei o rosto de Lúcio com perplexidade, tentando descortinar na sua expressão o seu verdadeiro intento, sem sucesso, no entanto, já que no meio daquela treva todos os rostos estavam vazios, dando rédea solta aos espíritos para tecerem os mais tenebrosos desígnios, livres de qualquer escrutínio. Ainda bem que o Lúcio era um amigo de longa data. Confiava nos seus desígnios, mesmo nos mais tenebrosos, especialmente nesses. Sem argumentar, e encobrindo um fugaz esgar de satisfação que permiti ao meu rosto assumir, deixei-o afastar-se, a pé, em direcção sabe-se lá de onde e para fazer sabe-se lá o quê, e voltei a concentrar todas as minhas atenções na mulher.

Saí do carro e abri a porta de trás, com o intuito de a acordar. Debrucei-me para a despertar e estaquei, com o rosto quase roçando o dela. Um perfume doce, inexplicavelmente aliciante, insinuou-se pelas narinas e, impossível de reprimir, o meu dedo tocou ao de leve na sua fronte, começando a descer lentamente pela linha do rosto, sedoso, que traçava um pescoço esguio e delineado na perfeição, até desembocar nos ombros despidos. Ajeitei-lhe a alça do vestido e acordou, de repente, assustada, assanhando-se, recuando para o banco mais afastado, o verde gélido perfurando-me inquisitivo e confuso, por momentos sem saber bem onde e com quem estava. Ao olhar para mim, avivou-se-lhe a memória e os seus lábios transfiguraram-se no trejeito de ironia malevolente a que me tinha habituado no decorrer da noite. «Sabes, também cobro quem quer ficar apenas a ver. Tenho a certeza de que o teu amigo não se importa». Deixei que um sorriso plácido se me desenhasse no rosto, o que apenas a provocou, e foi com um certo gáudio que vi os olhos verdes incendiaram-se ainda mais, até ficarem da cor do cabelo. «O que foi?» «Hm… nada, nada». Soergui-me e escancarei a porta do carro, fazendo um gesto redondo com o braço, encorajando-a a sair da toca. Acreditava que já se sentiria picada o suficiente para sair. De um salto, saiu do carro e um observador menos atento nunca diria que aqueles pequenos pés que saltitavam em direcção à minha casa ainda agora enfeitavam, inertes, o banco de trás do R6. Juntei-me a ela para a guiar pelo caminho tortuoso, penetrando no breu, quando o ouvi, trocista, um eco na penumbra, aproximando-se numa marcha rápida: «Hel, onde pensas tu que vais sem mim?»

01/05/09

Ariel - Capítulo V

Nada funcionava direito na porcaria do R7. Que merda de carro tinha o Hel, chiava que nem um porco em dia de matança, guinava perigosamente nas curvas e, qual cereja no topo do bolo, os piscas não funcionavam. A minha sorte é que de carros de merda percebia eu, nem sempre conduzira o maravilhoso do R6, que agora galgava quilómetro atrás de quilómetro à minha frente. Porque carga de água trocara eu de carro com ele? Fora para me armar, fora para me armar a ele e, sobretudo, a ela. Sempre gostara de mulheres ruivas, desde que me lembrava, mas nunca comera uma, nunca. Agora, lá ia ela, no meu carro, ao lado do sacana do Hel. Caralho, estava com dificuldade em manter os olhos abertos, era o que era, pesavam-me as pálpebras, todo eu era cansaço e sono. Seria a isto que chamam velhice precoce?

Precisava dum gole de álcool, mas sentia instintivamente que não era altura de beber mais nada. Tentei concentrar-me nas luzes traseiras do R6 que me precedia. Raios, o que estava eu a fazer? Se o Hel me fodesse o carro, tinha eu sarilhos à grande.

Teria? Ora, deixá-lo, reflecti, tentando pensar noutras coisas. No trabalho. Nos documentos. No meu pai. Caramba, lindo serviço o meu, Lúcio Ferro, 33 anos, agrónomo da treta colocado no Ministério dos Estrangeiros (?!?) por especial cunha parental. Putanheiro, bêbado, cínico, divorciado. Amigos? Talvez, o Hel, sim, o Hel era um amigo. Aliás, se não fosse o Hel, a sua juventude contagiante, a sua ética imparcial, completamente destituída de falsos pruridos ou das hipocrisias mais ou menos moralizantes que por aí abundam, se não fosse ele, tinha a impressão que há muito teria dado um tiro nos miolos e mandado tudo o resto à puta que pariu. Sim, o Hel era um amigo, como só um verdadeiro amigo pode ser: compreensivo quando é justo sê-lo e implacável quando não há outra possibilidade.

Liguei o rádio, milagre, funcionava! Oceano Pacífico, Oceano Pacífico. Ah, sim, o oceano pacífico, estávamos en route para Cascais, assim é que era, tínhamos deixado o 23 para trás, belo tasco, a vida era bela, a gaja que ia ao lado dele no meu carro também, eu não era novo mas podia ainda vencer; ainda podia vencer na vida. Refeito com este pensamento confortador, desci o vidro, escarrei para o asfalto e acelerei, para não deixar escapar da vista a traseira do R6.

Nisto, quase que perdia a saída da auto-estrada e praguejei ao constatar, mais uma vez, que os piscas do R7 não funcionavam. Fui encadeado pelos máximos dum carro atrás de nós, meti pelo desvio, reduzi e um carro atrás de mim quase que me batia. Marimbei-me no caso, curioso, desta feita nem luzes me haviam dado, como um peixe abri e fechei os olhos, várias vezes, e, com a boca aberta, de língua de fora, fiz brâbrâbrâbrâ múltiplas vezes, a ver se despertava. Funcionou. Ao menos eu funcionava.

Seguíamos para a quinta do Hel. Que bonita procissão. O Hel e a Ariel, aquela ruiva puta ou puta ruiva, no meu carro novinho em folha; eu, no chaço do Hel e, lá mais atrás um carro branco, curioso de novo, aquele porco deveria ir para o mesmo sítio que nós, talvez para Sintra, estranho caminho o dele, era o gajo que não me dera luzes; experimentei uma vaga sensação de perigo, mas até que nem íamos muito depressa e conclui que devia ser ainda a bebedeira, de certeza, tinha de me concentrar no que estava a fazer.

Passámos por Birre a abrir, na rotunda o Hel meteu demasiado depressa em direcção à Ericeira e ao fazê-lo as rodas traseiras do R6 resvalaram perigosamente e ele foi forçado a contra-guinar, quase saindo da estrada; mas o gajo estava doido ou quê? Tive que travar a pé fundo para não lhe bater e por meu turno quase que era abalroado pelo carro branco atrás de nós.

Em fila indiana, seguimos, agora mais devagar, parecia que o pulha do Hel estava a tentar localizar-se (nunca lhe deveria ter oferecido aquela última aguardente). E a Ariel, em que pensaria? Aquela miúda era realmente fora de série. Caramba, pensando melhor nisso, era uma miúda acima até da minha Liga, já não falando da do Hel. Bizarro, este filme todo era bizarro e mais bizarro era não saber qual seria a continuação. Fodê-la-ia eu, ou ele? Faríamos uma menage? Ficaríamos ambos a chuchar no dedo? Hum, muito estranho tudo isto, mas enfim, logo se tirava a prova dos nove.

O pobre do Hel devia estar mesmo mal. Quase que falhava a entrada da quinta e mais uma vez tive de desacelerar bruscamente para não bater na traseira do R6. Mas lá consegui e segui-o. No meu espelho retrovisor, o carro branco passou por nós, devagar, estranhamente devagar. O R6 estacionou um pouco mais à frente. Parei também, voltei o pescoço e olhei para trás. Raios. O camarada do carro branco, aquele carro que topara pela primeira vez à saída da auto-estrada, tinha-se imobilizado uns 50 metros à frente da entrada para a quinta. Estava parado, via-lhe as luzes por entre os pinheiros e, de repente, apagaram-se. Estranho, porra, muito estranho. E a merda dos documentos na bagageira do R6. Estaria eu a ficar paranóico? Hmm.

Voltei a custo a ligar o motor do chaço, avancei e estacionei, mesmo rés-vés, ao lado do R6. Desliguei o rádio. Oceano Pacífico, Oceano Pacífico. Pela janela aberta gritei para o Hel: «Ó, Hel, estás a dormir de olhos abertos, meu? ‘Tás bem?» O Hel não estava bem. Nada bem. Que filha da puta de sorte não me ter fodido o R6 todo. Balbuciou não sei o quê acerca da Ariel. Dormia, a puta, os seus longos cabelos alaranjados espraiavam-se pelo assento de cabedal, uma visão de anjo e ao mesmo tempo de pecado capaz de pôr o membro dum morto de pé. No entanto, havia no ar um perfume a aguardente e a esturro que não me agradou. Seria um incêndio? Não há incêndios no Inverno. E depois havia uma outra coisa. Aquele carro branco que, tinha a certeza, não se fora embora ainda. O Hel continuava meio bêbado, meio menino, a dizer não sei o quê de acordar a ruiva. Mais valia que a violasse assim, enquanto a puta dormia, tonta. Pobre Hel, às vezes era completamente inocente e tentei fazer-lhe ver isso mesmo: «Acorda-a tu, eu tenho de ir ali num instantinho». E tinha, de facto. Antes de tudo, tinha de certificar-me duma coisa
.

Pus-me a mexer sem lhe dar tempo para réplicas. Mexia-me agora velozmente, silencioso, na diagonal, até o sítio onde sabia existir um buraco na vedação da quinta, lembrava-me bem, no Verão anterior numa patuscada comentara com o Hel que era uma pena, que por ali «podiam entrar malfeitores». Na altura ríramos ambos, mas agora não era ocasião para graças. Eu ia com um objectivo; podia até ser que me enganasse, mas podia ser que não, e é pela dúvida que morre o burro, como é costume dizer-se. Lá estava o buraco na vedação, eheheh, nem o Hel nem os seus velhos avós, (O Hel é órfão de mãe e pai, talvez por isso a nossa amizade, eu também era órfão, isto se não contasse com o meu velhote) haviam mandado consertá-lo.

Esgueirei-me como um gato e zás, em três minutos ali estava eu, agachado, mesmo na traseira do carro branco. Sempre tivera razão, alguém nos seguira, a mim, a ele, a ambos, ou, hum, ou se calhar a ela, a Ariel… Porque razão nos haviam seguido? Lentamente, fui torneando a traseira do carro para o lado do condutor. Uma mão pendia da janela. Uma mão feminina, e dos seus dedos um cigarro com sabor a mentol. Com sabor a mentol… Hum… Sabia, ou julgava saber, quem nos tinha seguido. Contudo, só havia uma maneira de descobrir… Se estivesse enganado…

Ergui-me lesto e em dois passos estava junto à janela do condutor. Não me enganara. Trocista, escarninho, berrei-lhe aos ouvidos: «Que fazes aqui? É um bocadinho tarde para andares à caça dos patos gambozinos, não achas Telma?» Ela foi percorrida por um calafrio, dos bicos das unhas dos pés até à ponta dos seus cabelos loiros encaracolados e acho mesmo que se tivesse tomates estes lhe teriam caído ao chão; como não os tinha, foi só o cigarro. Antes mesmo deste chegar ao solo já eu dava uma longa passa e a inquiria, desta feita suavemente, quase melífluo, para ganhar balanço: «Então, amor, que fazes aqui?»

Respondeu da última forma para a qual estaria preparado. Torceu a boca, os olhos brilharam-lhe dementes e desatou num pranto tão inusitado quanto inquestionável, aqui e ali pontuado por desabafos e acusações: «Sim, segui-te, sim, sou uma puta, uma puta sim, mas segui-te porque te amo, até uma puta pode amar, porque te odeio, porque não suporto que tenhas saído com essa ruiva infernal que teu a volta à cabeça!»

Aquilo não estava a convencer-me de todo, já se sabe, de puta loira nem bom casamento nem boa foda mas, entretanto, o choro dela estava a dar-me tesão, senti o pau crescer-me nas boxers e resolvi que por agora acreditaria naquela tolice dela: «Gostas de mim, como assim, como é que podes gostar de mim?» E ela que gostava, que me desejava desde o primeiro momento em que eu entrara no 23, há uns bons seis meses atrás, que ficava fula cada vez que me vira sair com outra, que não percebia porque nunca solicitara os seus serviços… Pois, pois sim, eu sabia, era a tal história de putas loiras e de casamento, ó se sabia.

Finalmente relaxou. Lembrei-me do Hel e da Ariel. Que berbicacho este e agora, que podia eu fazer? Apetecia-me foder esta gaja que lacrimejante me confessa a extensão do seu amor, mas não sabia bem como. Então, lembrei-me da chave do anexo, afastado da casa principal da quinta uns bons 100 metros e que o Hel guardava debaixo do tapete da porta, «para quando chego bêbado e não quero armar estrilho Lúcio, ahahah! Quando quiseres vir cá abancar, ‘tás à vontade, só quando venho muito bêbado é que aqui entro, ahahah!»

O diabo é que naquele preciso momento o Hel estava bêbado, podia muito bem dar-lhe para lá se ir enfiar com a puta da Ariel e depois era uma chatice. E daí, até não; em sendo esse o caso, faríamos um foursome. Contudo, mais uma vez, merecia a pena confirmar as intenções dele, nessa noite não estava numa de partilhas.

A minha mente fervilhava num misto de excitação e de ressaca, Telma soluçava, boa como o milho, bela, vaca, puta, em todo o seu esplendor. Preguei-lhe um magnífico linguado, longo, e saquei-lhe as lágrimas do rosto com a língua. Pareceu animar-se. Tossiquei intencionalmente e disse-lhe, pausado: «Escuta, vês ali a casa?» E ela que sim, acenando. «Bem, daqui a vinte minutos, vês ali aquele anexo?» E ela, outra vez que sim, a fazer beicinho. «Bem, daqui a vinte minutos, vais lá ter comigo, mas não faças barulho, não faças barulho algum senão ‘tás fodida comigo, compreendido?» Acenou outra vez, ainda de beicinho, quase linda, depositei-lhe novo beijo e afastei-me pelo caminho por onde viera.

Ao chegar perto da casa o cenário havia-se transformado substancialmente. O Hel e a ruiva, em amena cavaqueira, que amigos que eles estavam, subiam o carreiro sinuoso. Decidi divertir-me um pouco, saltando-lhes ao caminho, estaquei sardónico e invectivei-os: «Hel, onde pensas tu que vais sem mim?»


30/04/09

Ariel - Capítulo VI

Fechei a porta do carro e ao sentar-me o meu velho e fiel companheiro R7 gemeu num lamento em todas as suas articulações. Dei à chave, pegou, comecei a rodar o volante, preparava-me para arrancar, quando tocou o telefone, raios. «Olá, querida…! Pois, não, não vai dar, é que hoje combinei com o Lúcio de ir beber um copo… Sim, eu sei que ontem também não podia… Bem sei que combinámos hoje de…» E ela desligou. Suspirei, engatei a primeira e, numa tosse roufenha, o R7 lançou-se, já veloz e robusto, para o meio das confusas ruas de Lisboa, espremendo-se por entre os carros, faixa atrás de faixa. Chuviscava. Esta porcaria de atitudes e de discussões por parte dela não vinham melhorar o meu dia. A última coisa de que precisava era de cenas de ciúmes, sobretudo por causa de amigos; se ainda fosse por causa de outra gaja, se, pelo menos, se pelo menos fosse realmente outra gaja! Ora, mulheres.

Já o doutoramento também não me corria de feição. Acabara de receber a notícia, por intermédio da delicodoce voz da minha orientadora, de que me iam «cortar a bolsa, que o projecto deixara de ser viável, que uma praga de Ceratitis capitata devastara os pomares, que a universidade e o departamento começavam a duvidar do meu empenho e interesse em levar o doutoramento a bom porto». Respondi que não, que fazia os possíveis, que já instalara as armadilhas Tephri, que tratara pessoalmente com os fornecedores acerca da compra de FFA, FFP e FFT, que os pomares seriam salvos, que era do meu maior interesse empenhar-me na conclusão do doutoramento. Enfim, a ladainha do costume, verdadeira, desta vez, mas ela não parecia muito convencida, acenando que sim com pequenos movimentos de cabeça, um sorriso amarelo decorando-lhe o rosto enrugado, interrompendo-me a meio para rematar com um céptico «pois, não pense mais nisso, Hel. Desfrute das suas férias e Boas Festas. Envio-lhe um e-mail para nos encontrarmos em Janeiro». Tornara-se dolorosamente óbvio que ia ficar sem bolsa a partir de Janeiro. Que bela maneira de começar 2009.

Pelo menos, tinha combinado este encontro com o Lúcio. Havia muito que não nos víamos. Ele andava ocupado com o seu novo cargo no ministério e eu ainda estava para perceber em que é que as suas funções consistiam exactamente. Na verdade, apesar do fiasco que se revelava, o doutoramento absorvia-me grande parte do meu tempo livre. Tínhamos agora esta pequena nesga de tempo, esta janela de oportunidade, quatro dias antes do Natal, para nos encontrarmos, pensar o futuro, rir do passado e, porque não?, do presente, sobretudo quando se houvesse motivo para brincadeira. O certo é que sempre conseguíamos encontrar motivo para rir, até nas situações mais improváveis.

Enfim, sentidos de humor muito peculiares. Sorri ao recordar-me da sua chamada, umas horas antes: «Vamos ao 23, Hel? Vamos, vamos até lá, bebemos uns copos, conhecemos umas miúdas vá, vá, percebo pela tom do teu silêncio que é isso mesmo de que estás a precisar». Talvez fosse mesmo… daí tivesse encolhido os ombros, esquecido as amarguras e os problemas e me concentrasse em olhar em frente; era preciso, estava um trânsito terrível.

Chegado às imediações do 23 não me poupei a levar o R7 numa passeata à volta dos quarteirões circundantes, desgastando as suspensões sobre os buracos da Baixa, à caça dum lugar, duma nesga de espaço nesta cidade cada vez mais atravancada. Finalmente, depois de quase três quartos de hora a tentar encontrar um pequeno nicho para o mastodôntico R7, lá consegui estacionar. Tirei a carteira do porta-luvas, abri a porta e reflecti, enquanto vestia o casaco, a noite soprava um vento gelado e a chuva caía, miudinha, que um cartão ministeriável devia resolver quase todos os meus problemas automobilísticos quando saía à noite. Pois devia, mas eu não tinha benesses dessas. Enfim, em passo estugado, percorri a calçada, sempre longe da estrada e atento, não fosse alguma besta decidir que precisava de um banho de meia-noite. Avistei a porta do 23. Era muito provável que fosse encontrar o Lúcio fulo da vida, farto de esperar por mim. Parei à porta do bar e o imenso monstro que estava feito cão de guarda à entrada, de cima dos seus quase dois metros, mirou-me de alto a baixo. Por detrás das suas lentes negras e impenetráveis, aparentemente satisfeito com a avaliação que fizera, deu um passo ao lado e deixou-me passar. Desejei as boas noites, fez gala em ignorar-me, e regressou ao seu posto, hirto, colossal. Entrei e avaliei o 23: à minha esquerda, encontrava-se o longo balcão em madeira escura e no lado direito viam-se algumas mesas, as cadeiras estavam ocupadas por pessoas a conversar e a beber. Perscrutei os recantos em busca de Lúcio, lancei o olho aos reservados, locais por natureza inconspícuos, ideais para se beber uns copos e pôr a conversa em dia. Depois de inspirar os cheiros e atmosfera do ambiente, detectei-o ao balcão, para surpresa minha, já acompanhado, tão cedo, de uma loira espampanante. Ela trazia um vestido curto, preto, sapatos de saltos altos e um cabelo loiro, encaracolado, dançando-lhe no rosto e hipnotizando o meu amigo. Desci calmamente o lanço de dois degraus, evitei algumas pessoas que dançavam ao som da música, tirei o casaco e, ao mesmo tempo que me sentava ao balcão, três ou quatro bancos afastado do Lúcio, longe de mim querer invadir o espaço dele, nesse momento, cruzei o meu com o seu olhar, deixei escapar um sorriso discreto, virei-me para o bartender e pedi uma imperial. Pela carantonha, deduzi ele estava interessado em tudo menos no meu pedido, mas ainda assim lá pegou num copo e começou a tirar a bebida.

Nisto, chegou-me ao canto do olho a mão sinuosa da loira, a cair, discreta, na perna de Lúcio, subindo, e este, todo entretido, todo mãos pelo corpo dela, os dois rostos colados, ele só sorrisos e ela a sussurrar, enrolando o cabelo com o indicador. Decidi esperar tranquilamente, degustando o líquido fresco e espumante que me refrescava a garganta. Curiosamente, o bartender parecia, por sua vez, interessado no flirt que se lhe desenrolava à frente, lançando olhares fugazes aos dois, por entre as diligências do balcão. De súbito, Lúcio olhou para mim, disse qualquer coisa à loira que ela pareceu não gostar e veio ao meu encontro, com um andar seguro e exibindo um sorriso visivelmente triunfante, ajeitando o colarinho da camisa. Estendeu-me a mão. Apertei-a, absorto, e disse-lhe, desprendido e seco, mas sem esconder o tom cúmplice: «Sim, maravilha, óptimo Lúcio, old fellow, vejo que te corre bem a vida…» Resmungou não sei o quê, com um gesto largo depreciativo indicou que aquilo, e aquilo era a boazona que ele despachara, não era «nada», «nada» e, sorrindo de novo, pediu também ele uma bebida.

De repente, chegou ao balcão uma mulher desleixada, quase a tropeçar nos próprios pés, de copo na mão, velha. Sentou-se no banco ao meu lado, o corpo apoiado no balcão para não cair, perscrutou-me com olhos ávidos e vidrados, arrotando, de um só jorro, um inusitado convite: «Vamos foder?». Lúcio conteve a muito custo um súbito ataque de riso. Na verdade, e para meu infortúnio, à minha frente encontrava-se, sem sombra de dúvida, a mulher mais desprezível de todo o bar, pelo que, em tom educado, recusei e retomei a minha aprazível tarefa de levar a imperial aos lábios. Ficou absorta por um instante, levantou-se mecanicamente, Lúcio ia gozando o prato com um sorriso escarninho nos lábios; ela ainda esteve para se bater a ele mas, talvez desancorajada por algo nos olhos do meu amigo, de copo vazio na mão, pelos vistos já mais interessada num sujeito que bebia sozinho, numa mesa protegida pela penumbra, afastou-se em sua direcção, cambaleante. Estávamos no 23, seguramente, estávamos no 23 - sem margem para dúvidas.

29/04/09

Ariel - Capítulo VII

A 20 de Dezembro, quatro dias para o Natal, foram-me concedidas as férias pelas quais há muito insistia, o meu chefe apertara-me a mão e dissera-me, roufenho, seco: «Lúcio, faz seis meses que está na casa, não se esqueça do que lhe digo, escute que talvez lhe venha a ser útil, na nossa profissão há muito mais a esconder do que a plantar. Muito menos couves, repolhos, tomates ou pepinos, não se esqueça disso, meu caro engenheiro Ferro, aprecie as suas férias».

Embora não fosse a primeira vez que o chefe me falava não gostei lá muito do que dissera, havia demasiados assuntos particulares em jogo; não me podia dar ao luxo de perder aquele posto e sobretudo não queria arranjar sarilhos com o meu velhote nem, muito menos, colocar em causa o seu próprio prestígio individual junto das altas esferas, pelo que optei por replicar: «Que achou da reunião, senhor director, esta história - dos aviões e das armas - pareceu-lhe a sério?..»

Acusou, como estava certo de que o faria, a estocada, e reiterou-me, como também sabia que o faria, que não era da minha conta, apenas estava ali para informar o «assessor do ministro dos internos». Claro, assenti, não éramos tolos, não fora por acaso que o meu velhote me financiara férias profissionais pagas em Inglaterra (belo do velhote), em parte a suas próprias expensas, ou favores; fora para me treinar para aquele tipo de momento, ou assim o desejava pensar. De vez em quando dava-me para isso. Fora, sim, fora.

Entretanto, a entrevista esmorecera ao ponto da trivialidade de sala. Percebendo-o, perfilei-me, apresentei as minhas saídas e educadamente virei as costas ao chefe. No seu canto, o colega da secretaria de Estado, todo ufanado da burocracia política que o levara ao poder, com um gesto simpático, deu oficialmente por finda a «reunião», também me desejou «uma boa quadra» e conduziu-me à porta. Lisonjeado pela sua deferência rasteira, saudei-o de maneira cortês - à inglesa –, e saí. No fim de contas, já tinha entrado de férias, tinha uma semana só para mim. Evitei o elevador, fui descendo as escadas, ponderando as opções: talvez uma estirada a Castelo de Bode, talvez um bom banho de imersão, talvez outra coisa. Depois logo decidia.

Quando abandonei o edifício da Cidade Judiciária e me encaminhei para o R6 percebi que chuviscava no parque exterior onde estacionara a viatura, uma chuva miúda, chuva molha tolos, o que até me convinha, não tinha pressa alguma e o meu propósito não favorecia testemunhas, inocentes ou não. Contente pela chuva, pela noite, pela semana de férias, abri a bagageira e levantei o tapete. No espaço entre a roda sobresselente e a caixa de transmissão do R6, como quem não quer a coisa, a fazer que olhava para os lados, depositei os documentos, o telemóvel, tendo o cuidado de o desligar. Hesitei, mas acabei também por guardar ali a pistola, esta carregada e no respectivo coldre. Cobri tudo com o tapete, alisei-o, com o comando tranquei a mala. Sentindo as gotas da chuva engrossarem de intensidade apressei-me a entrar no R6; a apreciar plenamente a sensação de conforto e de segurança que o seu habitat proporcionava.

Satisfeito com a minha situação na ordem natural das coisas, encapsulei-me, liguei a aparelhagem, sintonizei Tom Waits e arranquei suavemente da sede do serviço até Lisboa, em ritmo de cruzeiro, bordejando o rio, aqui e ali evitando os escolhos do trânsito. Ia ter com o Hel ao meu bar de eleição, a meio caminho entre a minha casa e o rio, o que me convinha; por outro lado, ia ter com o Hel mas também ia à procura de fêmeas, nem todos os dias é Natal.

Ao entrar na Baixa conduzia ligeiro por entre os buracos que, constava, remontavam à época pombalina. O trânsito intensificara-se, a chuva também. Ainda na noite anterior tinha estacionado o R6 em contra-mão, nas traseiras do ministério, só porque me apetecera e porque ninguém me chateava, pelo menos não chateavam funcionários com cartão ministeriável. Podia usá-lo nesta situação outra vez. Podia, ainda melhor, estacionar na garagem e refazer parte do trajecto a pé; apenas não podia dar nas vistas, o que resumia tudo.

Encontrei um lugar exactamente no sítio que me convinha, parara de chover. Despi a gabardine, saí do carro, tranquei a porta e quedei-me a apreciar o perfume do sucesso novinho em folha, o aço, a borracha molhada do belíssimo R6. Sorri. Tinha sido um presente do meu pai pelo meu último êxito reportado junto dos Estrangeiros (tudo mentira, embora bem orquestrada). Sucedera com a ajuda dum putativo candidato a Presidente da República, deputado, barbudo, conhecido do meu velhote dos anos de luta em Coimbra, enfim, um contacto, um dos notáveis que ele conhecia e que estivera presente na reunião em que se falara da revolta dos professores, outro tema quente do dia. Esbocei um trejeito ao recordar a expressão do primeiro-ministro quando o meu secretário de Estado mencionara “tráfico de armas”, “implicações políticas”, insinuando nas entrelinhas que possuía “inteligência” de que o golpe se efectuava com a colaboração de elementos “doutra nacionalidade”, nomeadamente um tal de Pedro, Pacheco, e ainda Pimentel, ligado aos americanos e do qual eu fingira nada saber, embora isso não viesse para o caso.

«Quanto menos souberes, melhor para ti», esse era o meu mote e raramente dele me desviava, a não ser à noite. A bem dizer, nada do que respeitava ao ministério me dizia um “ui”; estava perto dum clube que me seduzia pelas mulheres e que me agradava pelo companheirismo. E depois, o R6 estava suficientemente longe para não ter de me preocupar com isso, muito menos com os documentos na bagageira.

O que queria mesmo era divertir-me, desligar-me, despossuir-me, esquecer o ministério duma vez. Decidi compartimentar a mente, evitar de todo as intrigas, os jogos, as manhas, os méritos e desméritos do ministério. Em menos de nada, a passo estugado, dera comigo à porta do clube. Tinha chegado, estava no 23.

Ariel - Capítulo I

Tinha bebido imenso, bagaço, vinho tinto, aguardente velha, eu sei lá! Sentia-me perdido, sim, um tanto ou quanto fora de mim, confesso; con...