16/03/09

Ariel - Capítulo XVII

«Vá, vá, o chefe não gosta de esperar», a montanha de músculos impelia-me, empurrando-me com a mão pesada. Percebendo que não podia oferecer qualquer resistência, não ainda, resignei-me e caminhei à sua frente; seguia-me tão de perto que sentia a respiração pesada arrepiar-me os cabelos do cocuruto. Até a minha sombra tinha dificuldade em arranjar espaço entre nós. Depois de abandonarmos Ariel, seguimos por um corredor ladeado por várias portas. Agora que saíra do quarto, apercebia-me do quão velha a casa era. À medida que caminhávamos, a madeira enegrecida rangia a cada passo e o cheiro a humidade e mofo era de dar a volta ao estômago. Descíamos pé ante pé a escadaria que dava acesso ao andar de baixo quando, de súbito, o pé do brutamontes afundou-se na madeira podre; susteve a respiração com o espanto, abafou um grito e desequilibrou-se sobre mim. Com reflexos felinos, amparei-o com o braço contra o peito e, com a outra mão, crispei o corrimão, evitando o desastre. Senti a coluna estalar sob o peso que se abateu. Antes isso do que se esmagar sobre mim e rolarmos os dois aos trambolhões escadas abaixo. Notando o sangue acorrer-lhe ao focinho de tubarão branco, num misto de embaraço e de fúria, balbuciou uma ordem de avanço. Chegando à base das escadas, passei os olhos com voracidade pelo que me rodeava, numa tentativa de imprimir no cérebro todo o espaço da casa a que tivesse acesso. Alimentava a esperança secreta de me evadir, ainda não sabia como, mas não podia desistir, isso era certo, e todo o conhecimento do terreno que conseguisse obter seria uma ajuda inestimável. Assim que pisei o último degrau, avistei de imediato o pequeno hall e a porta de entrada ou, no meu caso, de saída. À minha direita, havia uma segunda porta, por trás da qual me chegavam vozes abafadas que riam e conversavam animadamente, juntamente com o cheiro a comida. Concluí que ali era a cozinha e, pelo ruído provocado pelas vozes, deviam lá estar dentro uns dois, talvez três homens. Via a minha tarefa cada vez mais dificultada. Sempre instando-me com empurrões nas costas, e eu sempre tentado a abrandar o passo, o Tubarão grunhiu qualquer coisa sobre como me daria um correctivo se continuasse a molengar a passo de lesma. «Por aqui», puxando-me por um braço, afastou-me da porta, circundámos as escadas pela esquerda e entrámos numa sala ampla com largas vidraças. A divisão estava vazia, à excepção dos móveis velhos e bafientos, antigos habitantes daquela casa e testemunhas da sua ruína, semi-cobertos por lençóis amarelecidos pelo tempo. Por todo o lado, ouvia os gemidos e lamentos da casa, dobrando-se sob o seu próprio peso, ameaçando ruir a qualquer momento, como se ela própria implorasse aos ocupantes, numa súplica lúgubre e chorosa, que pusessem cobro ao seu sofrimento.

Envolvido pela atmosfera densa e pelo silêncio sepulcral, estaquei e fiquei a observá-la de costas. Contemplando o exterior, uma mulher com longas cadeias de anéis loiros caindo-lhe sobre os ombros e descendo pelo tronco esguio e elegante levava um cigarro pensativo aos lábios, tragando longas, lentas e angustiadas passas. Decorridos alguns segundos, quando se apercebeu da presença de outras pessoas na mesma divisão, virou-se, esboçou um sorriso malicioso e encurtou o espaço entre nós. Cumprimentou o Tubarão com ar cúmplice, «Acabou-se-me o tabaco. Dás-me um cigarro dos teus, Telma? Hm, Telma… Ajeitou os caracóis loiros, «pensava que não gostavas dos meus, Tubarão» e passou-lhe um cigarro para as mãos. Ele deu-lhe fogo com uma chama gulosa; era agora um tubarão fumegante, «à falta de melhor…», que exalava um intenso odor mentolado. Mentol? Hm… Luzes acenderam-se numa explosão sináptica resplandecente ao inspirar aquele cheiro. Já o sentira antes, não há muito tempo, embora misturado com o cheiro do mar. Onde, onde, onde? Vamos, rapazes, nada de violência. Não vêem que eles estão a colaborar, até saíram do carro, como tão educadamente pedimos. Virou o olhar mordaz para mim e disse-me que, se me portasse bem, tudo acabaria em breve, «além disso…», cedo perdi o interesse nas patacoadas que me dizia e, embora fixo nela, não era o seu rosto pálido que observava. Antes, o meu cérebro mostrava-me imagem atrás de imagem dos acontecimentos da noite passada, como uma sessão de slides. Revivi a minha chegada ao 23, os cheiros, a música, as pessoas. Embora só a tivesse vislumbrado por breves instantes, uma, com o Lúcio, e outra, na mesa com o homem que se ocultava na penumbra, reconheci-a como a loira dessa noite. Lembrei-me de como recuara para a sombra quando, libertando-se do aperto do tal homem que queria permanecer na obscuridade, incógnito, saia do bar, de certeza para me seguir e ao Lúcio. A trama adensava-se. Apesar de ainda não saber quem eram e o que queriam, já começava a fazer sentido de alguns acontecimentos. O facto de o Tubarão e de a mulher estarem no 23 naquela noite, àquela hora, não era uma feliz coincidência; mais, algo cheirava mal no 23: se eles estavam lá, talvez o bar fosse mais do que aparentava à primeira vista, talvez até operassem a partir de lá; mas, o que operavam, não sabia dizer. Além do mais, agora que juntava as peças, invadia-me a sombria sensação de que o homem na penumbra era o chefe desta pandilha, controlando tudo o que se passara nessa noite, resguardado pelas trevas, com os seus olhinhos cintilantes. Como cereja no topo do bolo, Ariel desempenhava, estava convencido, um papel central: ela era o elo de ligação entre esta gente, o 23 e nós, o Lúcio e eu. Porque viera ter connosco? «…não é verdade?», após ter falado durante o que me pareceu horas, Telma interpelou-me, se bem que não tinha ouvido nada de nada. Tinha os olhos vítreos fixos nos dela, mas olhava para o vazio. O Tubarão libertou uma gargalhada sonora que ressoou pela casa, rangendo ainda mais a madeira. Temi que fosse dessa feita que a casa se desmoronasse. «Já viste, Telma, o moço está longe, muito longe. O que o medo não faz a uma pessoa, hã?», e dava asas ao seu gargalhar demente. Telma, porém, perscrutava-me com os seus grandes olhos azuis pestanudos, talhados a gelo, pouco convencida das palavras do cúmplice. Tinha voltado à realidade e enfrentava a sua mirada, porém, tão frio quanto ela, sem querer revelar que começava a apanhar o fio à meada da intriga; vá lá, dava, pelo menos, os primeiros passos. Compreendera que a minha atitude não era alimentada por medo, só que estava na dúvida quanto ao que o meu comportamento significava. Ao contrário do troglodita, Telma tinha dois palmos de testa. Deixei o cérebro em stand-by na Ariel, para retomar o raciocínio mais tarde. Aqueles olhos azuis gelavam-me. Sentia que, se pensasse, ler-me-iam os pensamentos. Foi por isso que não pensei e pedi-lhe, cândido e simples, um cigarro dos seus. Estreitou os olhos num sorriso, apertando os lábios. Reparei que o canto da boca formava uma covinha. Abriu o maço e estendeu-mo, «Vês? Só tenho dezoito, não te posso dar». O outro riu e disse-lhe para não ser má, para dar um ao rapaz, «é bem capaz de ser o último que fuma!», acrescentou, com um laivo de cinismo na voz. Reflectindo um instante, «está bem», tirou um, passou-o lentamente pelo meu rosto até ao canto do lábio e deixou-o lá. Mais rápida do que a própria sombra, sacou de uma pistola minúscula, premiu o gatilho em cheio na minha cara, «bang!», pisquei os olhos, e, com a chama bruxuleante iluminando o olhar azul, aproximou-se e deu-me lume. Ia pegar-lhe na mão para ajeitar a chama às minhas necessidades, mas o Tubarão tratou de me ferrar o pescoço com um calduço, «Psht, não toca!» O cigarro voou da boca. Dobrei as pernas para apanhá-lo, mas Telma esmagou o rolo de menta com o sapato impiedoso. «Chega de fantochadas!» Ainda curvado, olhei para cima. O seu olhar frio revelou-me que não estava de bom humor. «Tubarão, podes ir, ele está à espera». Passou por nós como um foguete; escutei os passos subirem a escada, algumas ofensas ao azelha que havia partido o degrau e o bater furioso de uma porta. «Mulheres! Vá-se lá perceber, não é? Num momento, dão-nos um cigarro e, no outro, tiram-nos o doce da boca». Meneei a cabeça. «Bom!», deu-me mais uma patada nas costas. Fechei os punhos, jurando para mim mesmo que ainda o faria pagar todas aquelas pantufadas. «Vá, anda!» Retomei a marcha, sempre com os dentes do Tubarão nos calcanhares.

Ariel, Ariel, Ariel, os slides continuavam a passar, um por um, à frente dos meus olhos. O que me estava a escapar? O que poderia ela ter, ou eu, ou o Lúcio, que interessasse a estes melros? Reconfigurei. A noite no bar: normal. A viagem até casa: normal (na medida do possível, considerando os excessos da noite). Em minha casa, também não se passara nada de assinalável… infelizmente. Só quando saímos com o carro e chegámos à praia é que… Um momento…! O carro, o R6, sim, claro!, como era mentecapto, um autêntico néscio! O episódio surgiu-me como uma revelação tão óbvia que pouco faltou para bater com a mão na testa. O que é que estás a fazer? Eu tinha razão! Eu… não, nada… nada, reparei que a porta da mala estava mal fechada, estava só a verificar, a fechar melhor... só isso… Antes de sairmos quinta fora no R6, tinha-a apanhado em flagrante delito, remexendo na bagageira. Lembrava-me de ter estudado o interior: papéis espalhados, ferramentas, um colete. Ela estava assustada, muito, demasiado, recordava-me bem, e não se devia à minha agressividade repentina, compreendia isso agora. Procurava algo. O quê? Talvez não, talvez estivesse a esconder alguma coisa, o que não me adiantava muito… Fosse como fosse, uma coisa era certa, Ariel encontrava-se na posse de algo ameaçador o suficiente que justificava darem-se a este trabalho todo para lhe deitarem a unha. Uma vez que ainda estávamos vivos, conclui que não haviam encontrado nada com ela quando a tinham revistado. Logo, o R6 encerrava um segredo a sete chaves e era apenas uma questão de tempo até se aperceberem disso. A minha vida dependia do tempo que conseguisse mantê-los longe do carro. Tinha de ganhar tempo, tinha de enfrentar o interrogatório com o chefe e, de preferência, que fosse uma cavaqueira demorada. Não sabia bem o que esperava alcançar, mas sabia que quanto mais tempo queimasse, mais fácil seria pôr ordem na casa, esfriar as ideias e elaborar um plano de fuga, sim!, fugir, fugir.

Seguro de que tinha descoberto ouro, mas que ainda me faltava um bocado para atingir o filão, deixei de pensar no assunto, reconfortado por, pelo menos, não me encontrar completamente no escuro; ainda assim, não tinha mais por onde continuar. A cabeça começava a latejar outra vez. Apertei as pálpebras sobre os olhos e voltei a subi-las. Tinha fome. Deixei o cérebro adormecer, catatónico, encarregando o Tubarão da tarefa de conduzir o meu corpo até ao destino. Atravessada a divisão ampla, chegámos a uma porta, igual a todas as outras, podre, bafienta e velha. «Queres uma passa antes de entrares?» Peguei no cigarro em silêncio, dei uma, duas longas passas e, a meio da terceira, «Psht, parou! Fumar faz mal», abarbatou-mo das mãos. Abriu a porta com um rangido e, com o pé, «Entra!», empurrou-me para o interior.

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