30/04/09

Ariel - Capítulo VI

Fechei a porta do carro e ao sentar-me o meu velho e fiel companheiro R7 gemeu num lamento em todas as suas articulações. Dei à chave, pegou, comecei a rodar o volante, preparava-me para arrancar, quando tocou o telefone, raios. «Olá, querida…! Pois, não, não vai dar, é que hoje combinei com o Lúcio de ir beber um copo… Sim, eu sei que ontem também não podia… Bem sei que combinámos hoje de…» E ela desligou. Suspirei, engatei a primeira e, numa tosse roufenha, o R7 lançou-se, já veloz e robusto, para o meio das confusas ruas de Lisboa, espremendo-se por entre os carros, faixa atrás de faixa. Chuviscava. Esta porcaria de atitudes e de discussões por parte dela não vinham melhorar o meu dia. A última coisa de que precisava era de cenas de ciúmes, sobretudo por causa de amigos; se ainda fosse por causa de outra gaja, se, pelo menos, se pelo menos fosse realmente outra gaja! Ora, mulheres.

Já o doutoramento também não me corria de feição. Acabara de receber a notícia, por intermédio da delicodoce voz da minha orientadora, de que me iam «cortar a bolsa, que o projecto deixara de ser viável, que uma praga de Ceratitis capitata devastara os pomares, que a universidade e o departamento começavam a duvidar do meu empenho e interesse em levar o doutoramento a bom porto». Respondi que não, que fazia os possíveis, que já instalara as armadilhas Tephri, que tratara pessoalmente com os fornecedores acerca da compra de FFA, FFP e FFT, que os pomares seriam salvos, que era do meu maior interesse empenhar-me na conclusão do doutoramento. Enfim, a ladainha do costume, verdadeira, desta vez, mas ela não parecia muito convencida, acenando que sim com pequenos movimentos de cabeça, um sorriso amarelo decorando-lhe o rosto enrugado, interrompendo-me a meio para rematar com um céptico «pois, não pense mais nisso, Hel. Desfrute das suas férias e Boas Festas. Envio-lhe um e-mail para nos encontrarmos em Janeiro». Tornara-se dolorosamente óbvio que ia ficar sem bolsa a partir de Janeiro. Que bela maneira de começar 2009.

Pelo menos, tinha combinado este encontro com o Lúcio. Havia muito que não nos víamos. Ele andava ocupado com o seu novo cargo no ministério e eu ainda estava para perceber em que é que as suas funções consistiam exactamente. Na verdade, apesar do fiasco que se revelava, o doutoramento absorvia-me grande parte do meu tempo livre. Tínhamos agora esta pequena nesga de tempo, esta janela de oportunidade, quatro dias antes do Natal, para nos encontrarmos, pensar o futuro, rir do passado e, porque não?, do presente, sobretudo quando se houvesse motivo para brincadeira. O certo é que sempre conseguíamos encontrar motivo para rir, até nas situações mais improváveis.

Enfim, sentidos de humor muito peculiares. Sorri ao recordar-me da sua chamada, umas horas antes: «Vamos ao 23, Hel? Vamos, vamos até lá, bebemos uns copos, conhecemos umas miúdas vá, vá, percebo pela tom do teu silêncio que é isso mesmo de que estás a precisar». Talvez fosse mesmo… daí tivesse encolhido os ombros, esquecido as amarguras e os problemas e me concentrasse em olhar em frente; era preciso, estava um trânsito terrível.

Chegado às imediações do 23 não me poupei a levar o R7 numa passeata à volta dos quarteirões circundantes, desgastando as suspensões sobre os buracos da Baixa, à caça dum lugar, duma nesga de espaço nesta cidade cada vez mais atravancada. Finalmente, depois de quase três quartos de hora a tentar encontrar um pequeno nicho para o mastodôntico R7, lá consegui estacionar. Tirei a carteira do porta-luvas, abri a porta e reflecti, enquanto vestia o casaco, a noite soprava um vento gelado e a chuva caía, miudinha, que um cartão ministeriável devia resolver quase todos os meus problemas automobilísticos quando saía à noite. Pois devia, mas eu não tinha benesses dessas. Enfim, em passo estugado, percorri a calçada, sempre longe da estrada e atento, não fosse alguma besta decidir que precisava de um banho de meia-noite. Avistei a porta do 23. Era muito provável que fosse encontrar o Lúcio fulo da vida, farto de esperar por mim. Parei à porta do bar e o imenso monstro que estava feito cão de guarda à entrada, de cima dos seus quase dois metros, mirou-me de alto a baixo. Por detrás das suas lentes negras e impenetráveis, aparentemente satisfeito com a avaliação que fizera, deu um passo ao lado e deixou-me passar. Desejei as boas noites, fez gala em ignorar-me, e regressou ao seu posto, hirto, colossal. Entrei e avaliei o 23: à minha esquerda, encontrava-se o longo balcão em madeira escura e no lado direito viam-se algumas mesas, as cadeiras estavam ocupadas por pessoas a conversar e a beber. Perscrutei os recantos em busca de Lúcio, lancei o olho aos reservados, locais por natureza inconspícuos, ideais para se beber uns copos e pôr a conversa em dia. Depois de inspirar os cheiros e atmosfera do ambiente, detectei-o ao balcão, para surpresa minha, já acompanhado, tão cedo, de uma loira espampanante. Ela trazia um vestido curto, preto, sapatos de saltos altos e um cabelo loiro, encaracolado, dançando-lhe no rosto e hipnotizando o meu amigo. Desci calmamente o lanço de dois degraus, evitei algumas pessoas que dançavam ao som da música, tirei o casaco e, ao mesmo tempo que me sentava ao balcão, três ou quatro bancos afastado do Lúcio, longe de mim querer invadir o espaço dele, nesse momento, cruzei o meu com o seu olhar, deixei escapar um sorriso discreto, virei-me para o bartender e pedi uma imperial. Pela carantonha, deduzi ele estava interessado em tudo menos no meu pedido, mas ainda assim lá pegou num copo e começou a tirar a bebida.

Nisto, chegou-me ao canto do olho a mão sinuosa da loira, a cair, discreta, na perna de Lúcio, subindo, e este, todo entretido, todo mãos pelo corpo dela, os dois rostos colados, ele só sorrisos e ela a sussurrar, enrolando o cabelo com o indicador. Decidi esperar tranquilamente, degustando o líquido fresco e espumante que me refrescava a garganta. Curiosamente, o bartender parecia, por sua vez, interessado no flirt que se lhe desenrolava à frente, lançando olhares fugazes aos dois, por entre as diligências do balcão. De súbito, Lúcio olhou para mim, disse qualquer coisa à loira que ela pareceu não gostar e veio ao meu encontro, com um andar seguro e exibindo um sorriso visivelmente triunfante, ajeitando o colarinho da camisa. Estendeu-me a mão. Apertei-a, absorto, e disse-lhe, desprendido e seco, mas sem esconder o tom cúmplice: «Sim, maravilha, óptimo Lúcio, old fellow, vejo que te corre bem a vida…» Resmungou não sei o quê, com um gesto largo depreciativo indicou que aquilo, e aquilo era a boazona que ele despachara, não era «nada», «nada» e, sorrindo de novo, pediu também ele uma bebida.

De repente, chegou ao balcão uma mulher desleixada, quase a tropeçar nos próprios pés, de copo na mão, velha. Sentou-se no banco ao meu lado, o corpo apoiado no balcão para não cair, perscrutou-me com olhos ávidos e vidrados, arrotando, de um só jorro, um inusitado convite: «Vamos foder?». Lúcio conteve a muito custo um súbito ataque de riso. Na verdade, e para meu infortúnio, à minha frente encontrava-se, sem sombra de dúvida, a mulher mais desprezível de todo o bar, pelo que, em tom educado, recusei e retomei a minha aprazível tarefa de levar a imperial aos lábios. Ficou absorta por um instante, levantou-se mecanicamente, Lúcio ia gozando o prato com um sorriso escarninho nos lábios; ela ainda esteve para se bater a ele mas, talvez desancorajada por algo nos olhos do meu amigo, de copo vazio na mão, pelos vistos já mais interessada num sujeito que bebia sozinho, numa mesa protegida pela penumbra, afastou-se em sua direcção, cambaleante. Estávamos no 23, seguramente, estávamos no 23 - sem margem para dúvidas.

29/04/09

Ariel - Capítulo VII

A 20 de Dezembro, quatro dias para o Natal, foram-me concedidas as férias pelas quais há muito insistia, o meu chefe apertara-me a mão e dissera-me, roufenho, seco: «Lúcio, faz seis meses que está na casa, não se esqueça do que lhe digo, escute que talvez lhe venha a ser útil, na nossa profissão há muito mais a esconder do que a plantar. Muito menos couves, repolhos, tomates ou pepinos, não se esqueça disso, meu caro engenheiro Ferro, aprecie as suas férias».

Embora não fosse a primeira vez que o chefe me falava não gostei lá muito do que dissera, havia demasiados assuntos particulares em jogo; não me podia dar ao luxo de perder aquele posto e sobretudo não queria arranjar sarilhos com o meu velhote nem, muito menos, colocar em causa o seu próprio prestígio individual junto das altas esferas, pelo que optei por replicar: «Que achou da reunião, senhor director, esta história - dos aviões e das armas - pareceu-lhe a sério?..»

Acusou, como estava certo de que o faria, a estocada, e reiterou-me, como também sabia que o faria, que não era da minha conta, apenas estava ali para informar o «assessor do ministro dos internos». Claro, assenti, não éramos tolos, não fora por acaso que o meu velhote me financiara férias profissionais pagas em Inglaterra (belo do velhote), em parte a suas próprias expensas, ou favores; fora para me treinar para aquele tipo de momento, ou assim o desejava pensar. De vez em quando dava-me para isso. Fora, sim, fora.

Entretanto, a entrevista esmorecera ao ponto da trivialidade de sala. Percebendo-o, perfilei-me, apresentei as minhas saídas e educadamente virei as costas ao chefe. No seu canto, o colega da secretaria de Estado, todo ufanado da burocracia política que o levara ao poder, com um gesto simpático, deu oficialmente por finda a «reunião», também me desejou «uma boa quadra» e conduziu-me à porta. Lisonjeado pela sua deferência rasteira, saudei-o de maneira cortês - à inglesa –, e saí. No fim de contas, já tinha entrado de férias, tinha uma semana só para mim. Evitei o elevador, fui descendo as escadas, ponderando as opções: talvez uma estirada a Castelo de Bode, talvez um bom banho de imersão, talvez outra coisa. Depois logo decidia.

Quando abandonei o edifício da Cidade Judiciária e me encaminhei para o R6 percebi que chuviscava no parque exterior onde estacionara a viatura, uma chuva miúda, chuva molha tolos, o que até me convinha, não tinha pressa alguma e o meu propósito não favorecia testemunhas, inocentes ou não. Contente pela chuva, pela noite, pela semana de férias, abri a bagageira e levantei o tapete. No espaço entre a roda sobresselente e a caixa de transmissão do R6, como quem não quer a coisa, a fazer que olhava para os lados, depositei os documentos, o telemóvel, tendo o cuidado de o desligar. Hesitei, mas acabei também por guardar ali a pistola, esta carregada e no respectivo coldre. Cobri tudo com o tapete, alisei-o, com o comando tranquei a mala. Sentindo as gotas da chuva engrossarem de intensidade apressei-me a entrar no R6; a apreciar plenamente a sensação de conforto e de segurança que o seu habitat proporcionava.

Satisfeito com a minha situação na ordem natural das coisas, encapsulei-me, liguei a aparelhagem, sintonizei Tom Waits e arranquei suavemente da sede do serviço até Lisboa, em ritmo de cruzeiro, bordejando o rio, aqui e ali evitando os escolhos do trânsito. Ia ter com o Hel ao meu bar de eleição, a meio caminho entre a minha casa e o rio, o que me convinha; por outro lado, ia ter com o Hel mas também ia à procura de fêmeas, nem todos os dias é Natal.

Ao entrar na Baixa conduzia ligeiro por entre os buracos que, constava, remontavam à época pombalina. O trânsito intensificara-se, a chuva também. Ainda na noite anterior tinha estacionado o R6 em contra-mão, nas traseiras do ministério, só porque me apetecera e porque ninguém me chateava, pelo menos não chateavam funcionários com cartão ministeriável. Podia usá-lo nesta situação outra vez. Podia, ainda melhor, estacionar na garagem e refazer parte do trajecto a pé; apenas não podia dar nas vistas, o que resumia tudo.

Encontrei um lugar exactamente no sítio que me convinha, parara de chover. Despi a gabardine, saí do carro, tranquei a porta e quedei-me a apreciar o perfume do sucesso novinho em folha, o aço, a borracha molhada do belíssimo R6. Sorri. Tinha sido um presente do meu pai pelo meu último êxito reportado junto dos Estrangeiros (tudo mentira, embora bem orquestrada). Sucedera com a ajuda dum putativo candidato a Presidente da República, deputado, barbudo, conhecido do meu velhote dos anos de luta em Coimbra, enfim, um contacto, um dos notáveis que ele conhecia e que estivera presente na reunião em que se falara da revolta dos professores, outro tema quente do dia. Esbocei um trejeito ao recordar a expressão do primeiro-ministro quando o meu secretário de Estado mencionara “tráfico de armas”, “implicações políticas”, insinuando nas entrelinhas que possuía “inteligência” de que o golpe se efectuava com a colaboração de elementos “doutra nacionalidade”, nomeadamente um tal de Pedro, Pacheco, e ainda Pimentel, ligado aos americanos e do qual eu fingira nada saber, embora isso não viesse para o caso.

«Quanto menos souberes, melhor para ti», esse era o meu mote e raramente dele me desviava, a não ser à noite. A bem dizer, nada do que respeitava ao ministério me dizia um “ui”; estava perto dum clube que me seduzia pelas mulheres e que me agradava pelo companheirismo. E depois, o R6 estava suficientemente longe para não ter de me preocupar com isso, muito menos com os documentos na bagageira.

O que queria mesmo era divertir-me, desligar-me, despossuir-me, esquecer o ministério duma vez. Decidi compartimentar a mente, evitar de todo as intrigas, os jogos, as manhas, os méritos e desméritos do ministério. Em menos de nada, a passo estugado, dera comigo à porta do clube. Tinha chegado, estava no 23.

28/04/09

Ariel - Capítulo VIII

O céu cobrira-se de nuvens espessas e pesadas, ocultando as estrelas, deixando escapar alguns dedos de uma pálida luz lunar. Parecia que ia chover outra vez, desta vez a sério. À minha frente, envolvido pela sombra húmida, o carreiro pela quinta do Hel até sua casa tornava-se cada vez mais íngreme. Sem falar que a obscuridade não me permitia ver um palmo à frente dos olhos. Distinguia vagamente a silhueta alta e magra do meu amigo, caminhando uns passos à frente, liderando o caminho por entre a treva, em piloto automático, como se os pés conhecessem o caminho por instinto. Apercebi-me, então, de que ele, apesar de bêbado, nem devia estar a usar os olhos. Afinal, sempre vivera ali. Já eu, desprovido do mesmo sentido de orientação, incauto e sofrendo ainda de uma ligeira embriaguez, esmaguei a ponta do pé contra um calhau saliente, soltei um uivo de dor, que se repercutiu no vazio, tropecei e a minha mão, num voo instintivo, levou comigo a ruiva pelo ombro, que caminhava alguns centímetros diante de mim, também com dificuldades em evitar as armadilhas do percurso acidentado. Os passos incessantes do Hel estacaram, o seu corpo virou-se (ou pelo menos, julguei que sim) e perguntou-nos se estávamos bem. «Já falta pouco», acrescentou, exortando-nos a ter cuidado, sobretudo à noite. Grunhi um agradecimento entre alguns impropérios, enquanto esfregava o pé que latejava de dor. Aceitei a ajuda da ruiva, que se levantara, leve e ágil, e me estendera a mão muda. Olhei para cima, para o rosto dela, mas se mal via a mão à minha frente, muito menos lhe veria a cara. «O caminho é perigoso; há montes de calhaus e raízes salientes. Não te lembras, Lúcio?», lembrou, expedito e diligente, mas, de mim, não conseguia esconder a leve ironia subjacente que anos de amizade detectavam com facilidade. Sentia-o rir-se da minha figura. «Vá, menino, vá, à minha frente e vê se avisas acerca de perigos iminentes», respondi, seco. Depois de me ajudar a levantar, a ruiva puxou o vestido para baixo, tirou os saltos, adiantou-se uns passos e chegou-se ao Hel, talvez receosa de cair na mesma cilada que eu. Parecia estar a perguntar-lhe se faltava muito. Comecei a sentir alguns chuviscos bater-me na cara e instiguei os meus companheiros a apressar a marcha.

Na verdade, ao contrário do que o comentário do Hel sugeria, tinha boas memórias daquele lugar. No Verão, o meu amigo convidara-me para almoçar, «uns grelhados, uns vinhos, o que dizes?». Aceitei, claro. Nessa altura, além do buraco na vedação refundido por alguma vegetação, reparara que se tratava de uma quinta modesta, mas, ainda assim, com alguns anexos, uma pequena plantação de vegetais e uma videira frondosa que emanava um odor adocicado e encobria o soalheiro pátio de entrada, onde, nesse dia, preparáramos uma bela refeição, regada do bom vinho a que a amizade e a camaradagem instam. Apercebera-me, também na altura, de que alguns dos anexos tinham um ar abandonado, exibiam até uma extensa camada de musgo. Todavia, no meio daquele breu e névoa, todo o espaço se me apresentava ao olhar indecifrável e impenetrável. Lembrei-me também de me ter contado que o avô fora, há algumas décadas, alguém – se bem que não a nadar nele – com papel, desafogado e com negócios próprios. Torrara tudo em bebida e putas. Agora, sobrava-lhes a quinta e só porque a avó conseguira salvar o suficiente para saldar as dívidas e subsistir.

Como sabia que o Hel fazia o que podia para ajudar a manter o sítio, foi com surpresa que constatei, depois de um caminho sem mais incidentes de maior e de atravessar a pesada porta de madeira que dava para o interior do anexo em que vivia, que o traste se munira de um computador topo de gama, uma boa aparelhagem e, imagine-se, um plasma, o que parecia no mínimo suspeito para alguém que alegava ver televisão «apenas quando passam as notícias». Virei a cara com um esgar trocista e comentei que ele nunca me chegara a dizer quanto recebia de bolsa do doutoramento. «Ó, sabes, dá para viver», retorquiu, alheio, como se não fosse nada com ele. Não admira que estivesse tão fulo por lhe irem tirar a bolsa. Pensei como é fácil habituar-nos às benesses que recebemos, já o contrário… Também eu já passara pela minha quota-parte de dificuldades.

«Hel? Vou pôr as chaves da tua lata ao pé do computador. Põe também as minhas aí, que não as quero perdidas, ouviste?» Anuiu com um movimento de cabeça, atirou-me as chaves do R6, que coloquei junto das dele, e regressou à tarefa de desocupar o sofá de algumas roupas, no qual me acomodou e à ruiva; e eu, sentindo-me mais confortável e repousado o suficiente da caminhada, decidi deixar os assuntos seculares de lado e, esfregando as mãos, dedicar-me a assuntos mais, er, espirituais. Lembrei-me da ruiva, que acendia um cigarro, recostada no sofá, e do que nos levara até tão longe, até à casa do Hel, perdida no matagal que atravessáramos. «Meu caro, recorda-me, onde sonegas as bebidas?», perguntei, ávido e impaciente. Nos últimos tempos, Hel vinha-me tantalizando com a sua recém adquirida colecção de bebidas espirituosas. «Ora, ora, e eu lá sou homem de sonegar bebidas aos amigos!», declarou, jovial e prazenteiro, «vem comigo». Deixámos a ruiva estendida no sofá, gozando o seu cigarro, que levava à boca em gestos lentos e pensativos. Não exibia a mínima vontade de nos acompanhar. Era óbvio que precisava de uma bebida para reacender a faísca que, no 23, estivera muito mais fulgurante. Chegados à cozinha, Hel conduziu-me ao seu bar improvisado, abri a porta do armário rasteiro, estiquei o braço e tacteei o vidro frio. Hm, várias garrafas, ainda pesadas. Inclinei a cabeça e espreitei. Soltei uma exclamação de aprovação, satisfeito por perceber que conseguira ensinar ao Hel alguma coisa sobre bebidas de qualidade: gin, whisky, água ardente, alguns licores, muitas destas garrafas ainda por abrir, o que era uma pena. Hel olhava para mim, de pé, com um trejeito de satisfação óbvio. Pedi-lhe copos e servi um Porto, brindámos à noite e degustámos lentamente, em amena cumplicidade silenciosa, a bebida que nos aconchegava num calor que se propagava, primeiro pelo estômago, depois pelo peito e só então cobrindo o corpo. Depois, saquei do whisky e despejei duas doses generosas, passei-lhas para as mãos e disse-lhe que levasse a outra à ruiva. «Eu já vou ter convosco. Antes, quero estudar melhor a tua colecção de garrafas». Afastou-se com os copos, não sem antes me dizer que me sentisse tão à vontade em sua casa quanto ele se sentia na minha. Fiz questão de frisar que assim faria e arranquei-lhe um sorriso rasgado. Instei-o com um gesto de mão a ir e a deixar-me a sós.

Servi-me de uma porção de gin com água tónica, peguei numa garrafa de whisky e saí pela porta das traseiras, que dava da cozinha para um pequeno espaço, que continha apenas um estendal de roupa, duas cadeiras e uma mesa, resguardada por um toldo. Sentei-me numa das cadeiras de plástico, ouvindo a chuva cair, sem vento, mas com uma atmosfera de humidade que começava a enregelar os ossos. Acendi um cigarro. Enquanto bebia, pensava na Telma; já estaria à minha espera no anexo, loira, chorosa e receptiva? O gin evaporara-se num ápice, o que me causou uma sensação de estranheza, já que não estava calor suficiente para que se desse um fenómeno dessa natureza. Decidi servir-me de uma boa medida de whisky (Chivas, muito bem, Hel!). Lembrei-me também da ruiva, deitada no sofá do Hel, com este certamente empregando todas as artimanhas do seu parco conhecimento para lhe saltar em cima. Que pensamento feio, Lúcio, que feio!, e ri em voz alta. Não obstante, devia voltar para junto deles sem perder muito mais tempo. Apesar de tudo, o Hel não era parvo. Temia que se escapulisse com a ruiva para o tal anexo e me deixasse à míngua. Pior, podia dar de caras com a Telma. E daí, talvez não fosse assim tão mau… A noite arrefecia a pique e o ambiente em casa augurava muito mais calor. Levei o copo aos lábios e deixei escorrer as últimas gotas. Hm, o whisky desaparecera misteriosamente. Poderia o copo ter alguma fuga…? Pendurando o cigarro nos lábios, voltei a servir-me do whisky (um último copo antes de regressar) e dei um longo trago. Caiu-me como napalm no estômago, incinerando todos os recantos das minhas vísceras. Soltei um arroto acre, os olhos abriram as torneiras e as minhas papilas torceram-se de indignação com o gosto a vomitado. Veio-me à memória que não tinha comido muito nesse dia, apenas uma sopa ao almoço, uma sandes à tarde e saltara o jantar, desejoso de chegar ao 23 e me encontrar com o Hel. Tentei levantar-me, mas a cabeça pesava-me e uma tontura atirou-me com violência para trás, contra o espaldar da cadeira. Parecia que todas as bebidas que ingerira ao longo dessa noite haviam tomado de assalto a minha cabeça para passar o serão

Regressei à cozinha, com a mão no estômago, olhei pelo corredor que dava para o quarto do Hel e pareceu-me mais longo e sinuoso do que antes, a imagem inclinava-se, desfocada e turva, tentei pousar a garrafa no balcão, mas falhei e foi estilhaçar-se aos meus pés, vidros por todo o lado e o odor do malte a insinuar-se pela casa. Do quarto do Hel, as vozes e risos abafados cessaram ao chinfrim abrupto do Chivas a embater no solo, um silêncio sepulcral e lívido abateu-se sobre a casa quebrado apenas pela voz do meu amigo, que ouvia chamar timidamente o meu nome, ao longe. Tentei encaminhar-me para o quarto, mas o corredor serpenteava e passava de turvo a branco, de branco a turvo, de turvo a branco… e, de repente, num esforço hercúleo, foquei os olhos e vi o Hel estacado à minha frente, também ele turvo, «estás bem?», ouvia a voz distante e envolta num estranho eco enevoado. Segurou-me pelo braço e guiou-me pelo interminável corredor, passo a passo a passo a passo, à medida que ouvia a minha voz trepar-me pela garganta, tropeçando a meio caminho na língua seca e brotando dos lábios como se outro falasse por mim, «eu… não, meu, deixa, deixa… chtou bem, foi zó… hm…uma indispoxição». Entrámos no quarto e a ruiva dardejou-me com o seu desprezo verde. Levantou-se para que o Hel depositasse o meu corpo no sofá, mas este fez-lhe sinal para que se deixasse estar, «na cama tem mais espaço», ouviu-o dizer. «Tu é que sabes», e voltou a sentar-se, levando o whisky aos lábios vermelhos.

Pesado como uma pedra, afundei-me na cama, quente, macia, que me abraçava com o carinho e o desejo que imaginava nos braços da ruiva. Estranha mulher. Conhecera-a hoje, naquele bar, com o Hel, e que incrível atracção exercia sobre mim. Sentiria Hel o mesmo? Aproximara-se de nós, nós dela, como se uma força nos atraísse, um misterioso desígnio e, copo atrás de copo, a conversa prolongara-se até quase ao fecho do bar. Já estava deitado, esparramado na cama. Pensamentos desconexos furavam e corriam os túneis da minha mente unindo-se a sonhos de cabelos de fogo e pele de seda. Seda a arder. Hehe… Ela ajeitou-se no sofá, cruzou as pernas e colocou uma mão sobre o joelho. À sua frente, de pé, Hel servia-lhe outra bebida. Conversavam. O seu riso entrecortado por sussurros cúmplices martelava-me incessante na cabeça. Virei-me de barriga para cima, depois para a esquerda, para a direita, de barriga para baixo, tentando fazer com que o quarto parasse de girar. Os meus olhos voltaram a tentar fixar os dois. Via o Hel, de costas, já sentado ao lado dela. Virou o rosto para trás e disse-me algo: «devias …scansar… um… pou… aposto que n… …este… o dia to…». Voltou a virar-se para a ruiva, num movimento lento e arrastado de cabeça. Ou talvez fosse eu. Vi que ela insinuava a mão branca pela perna do Hel e parecia aproximar o rosto do dele. «Ya, ya…» Pisquei os olhos, uma, duas vezes, tentando focar, lutando contra a torpeza, «talvez devesse…» contra as pálpebras que teimavam em fechar-se a ferros «descansar…». Semicerrei os olhos, por um momento, «só um bocadinho»… as vozes confundiam-se, abafadas por um trovão que ribombava lá ao longe… voltei a abri-los num esforço supremo… mas era demasiado.

23/04/09

Ariel - Capítulo IX

«Lúcio, meu, não bebo mais, combinei amanhã de manhã com a Teresa, não posso aparecer todo fodido!», insisti, antecipando como acabaria a nossa incursão no bar, pois já sabia que quando não aguentava a bebida na cabeça, também não a aguentava no estômago, e que a minha noite ficaria arruinada. «Calma, meu, tem calma, deixa lá ‘tar a pequena (pesquei o piscar de olho que Lúcio lançou para a puta ruiva sentada entre nós os dois), bebe mais uma aguardente e repara como é belo o mundo», proferiu, pausado e marcando bem as sílabas, com um largo gesto de mão, abarcando o ambiente em nosso redor.

A ruiva, sem aviso, espetou-me a língua quente no ouvido, apresentando argumentos irrefutáveis a que ficasse sentado no lugar, e uma forte reacção por trás do fecho das calças não se fez esperar, uma saudação à língua dela no meu ouvido, movendo-se em lentos círculos. No entanto, e por muito empenhado que estivesse em continuar fixado no assento, com o corpo quente dela a roçar-se no meu e na companhia da aguardente do Lúcio, saltei da cadeira, «vou à casa de banho, tenho de ir à casa de banho!», amparei-me na mesa com uma das mãos, apoiei o corpo, ainda num equilíbrio hesitante, e, incerto de para onde me devia dirigir, onde raio é a casa de banho!?, pensei, em desespero face à perspectiva de me humilhar no 23, numa passada larga, agarrado ao estômago, lá a encontrei, por trás de uma porta de madeira, pintada de branco, mas já amarelada pelo tempo e pelo tabaco, uma casa de banho suja, porca, a tresandar a mijo e a vómito. Eu seria apenas mais um. Sem cerimónias, ajoelhei-me, prendi as mãos ao mármore e enfiei a cabeça na retrete. Levantei-me lentamente, já mais lúcido, se bem que ainda bêbedo, naquele estado de semi-lucidez ébria (ou semi-loucura sóbria, conforme se seja do tipo meio copo vazio, meio copo cheio), limpei a boca às costas da mão, avancei para o lavatório, abri a torneira, que chiou e se engasgou com o ar, e levei uma concha de água à cara, outra, e ainda mais outra, esfreguei os olhos e mirei-me no espelho. O reflexo retorquia-me os meus olhos raiados de sangue e os meus lábios secos. Apercebi-me de que estava cheio de sede, voltei a abrir a torneira e bebi até o gosto a serradura desaparecer da boca. Já me sentia bem melhor. Não me devia meter nestas merdas, pensei, enquanto observava o espelho manchado e partido num dos cantos. Com um pai ceifado por cirrose e um avô com problemas de úlcera, talvez fosse boa ideia dar um descanso ao meu fígado amargurado.

A propósito, estariam o Lúcio e a ruiva à minha espera, na mesa do bar? O mais provável é que se tivesse escapulido com a miúda. «Nããã», afastei esse pensamento da cabeça, «ele é meu amigo, não me abandonaria à minha sorte num bar mau reputado e num ambiente hostil como este». Ri-me dos meus próprios pensamentos… ambiente hostil… E a ruiva? Teria engraçado com o Lúcio, ou comigo? «Ora, esquece isso rapaz, repara mas é bem naquele traço!», segui a voz do Lúcio em direcção à entrada e, parando o copo a meio, voltei a pousá-lo, mirando-a de alto a baixo, à medida que se aproximava da nossa mesa com passos fulgurantes, emanando sensualidade à sua passagem, capturando olhares e obrigando pescoços a torcerem-se em posições pouco naturais, com os caracóis vermelhos esbatendo qualquer cor que pudesse existir na sala. Vinha com um cigarro comprido no canto dos lábios, parou junto à nossa mesa e, com uma voz suave e hipnotizante, perguntou-nos se tínhamos lume. Olhei em redor, com a claustrofóbica sensação de que todo o bar nos observava, expectante, como a família que se reúne no sofá para ver o desfecho da telenovela da noite. Lúcio e eu ficámos mudos por instantes, respondemos que sim, claro, mas, mais ágil do que ele, lancei a mão ao isqueiro do meu amigo, em cima da mesa, e acendi-o. Inclinou-se e aproximou o rosto do meu; colocou uma mão quente sobre a minha. Levantou os olhos para os meus e vi que eram verdes, intensos, mas estranhamente frios, em contraste com a ponta do cigarro, que via incendiar, por entre a chama do isqueiro, num fulgor vermelho e incandescente. Voltou a erguer-se e libertou o fumo, expirando lenta e longamente, como se entediada. Por baixo da mesa, um peso abateu-se em cheio no meu pé, quase arrancando-me um grito silencioso, quando ouvi o Lúcio, que retirava o sapato pesado de cima do meu, e me instigava, sibilante, «oferece-lhe uma bebida, infeliz!», tossicando, em seguida. Assim fiz, ela aceitou, sentou-se à nossa mesa e o resto decorreu naturalmente: continuámos a beber e observava o meu amigo enquanto delineava os planos para a madrugada que começava a romper. Deixei-o fazer o que sabia fazer melhor, sempre participando deste diálogo a três, nunca me deixando apagar, claro, o Lúcio era um gula, e até suavizando algumas indelicadezas que lhe saiam pela boca, muitas pensadas, outras nem tanto, mas sem atrapalhar o jogo dele, que, no final de contas, acabaria por me beneficiar. A ruiva fora à bola comigo, isso parecera-me óbvio, pelo menos pela forma como roçava o corpo no meu e passeava a mão na minha perna, por debaixo da mesa. Tudo augurava um desfecho favorável para os meus lados, até fraquejar e correr para a casa de banho, merda de estômago doente e fraco! Mas, era estranho, uma miúda tão bonita… bonita de mais para levar a vida que levava. Tinha um magnetismo que não se encontrava por aí em qualquer canto na rua. Aos poucos, monopolizara o espaço e o assunto, e isso não se devera somente ao par de longas pernas esculturais, busto convidativo, cabelo de fogo e lábios vermelhos e insinuantes. Sim, nada de ingenuidades românticas, eram, de facto, atributos que só favoreciam esse magnetismo; porém, havia mais alguma coisa, escondida, como se ela apenas nos tivesse apresentado uma fachada, uma máscara, algo nos seus olhos verdes que absorvera toda a minha atenção, esgotando-me a mente. Já visitara o 23 noutras ocasiões com o Lúcio e, para puta, havia algo que a denunciava na forma de se comportar e falar como pertencendo a uma outra esfera social de putas, daquelas às quais nenhum meco sentado numa cadeira dum bar tem os meios para aceder, mesmo na companhia de um amigo com cartão ministeriável.

A porta batia ruidosamente e parecia querer ceder nas dobradiças. Acordei, abanei a cabeça, voltando a agarrar-me à realidade. Já me sentia melhor. «Ó da casa, ainda demoras muito?» Ouvia os urros de um tipo, pelos vistos em pior estado do que eu. Abri a porta e, sem me dar tempo de sair, abalroou-me, quase tropeçando, e colocou-se na mesma posição e no local exacto que eu ocupara não fazia ainda dez minutos. Saí e fechei a porta, deixando o homem gozar a sua privacidade e entregue aos seus pensamentos, fossem eles quais fossem. Num ápice, de olhos bem arregalados, corri as mesas em busca da ruiva e do Lúcio. Nada. Nem sinal dos dois. «Não é que o sacana me deixou mesmo sozinho?, aqui, a ver navios». Enquanto passava as mesas a pente fino, dei com o tal homem que ocupava a mesa do canto, envolto em penumbra, o tal com quem a velha catatua fora ter depois de tentar a sua sorte comigo. Desta vez, estava acompanhado por outra mulher, bem mais apetecível e agradável aos sentidos, uma loira, a loira. Estava com o rosto quase colado ao do homem e conversavam em sussurros exaltados, cheios de secretismo e suspeitas, ele segurando-a pelo pulso com firmeza. Ela libertou-se com um puxão e o homem pareceu conter um gesto mais violento. A loira recostou-se na cadeira, cruzou a perna coberta pelas meias negras, terminou a bebida e levantou-se. Ia em direcção à saída, aparentemente insatisfeita com alguma coisa, e os seus olhos escondiam uma estranha desilusão. Algo me disse que não seria boa ideia ser apanhado a observar estes dois; dando um passo atrás, recolhi-me na sombra, esperando discretamente que a loira desfilasse por mim. Saí para a luz e tirei o telemóvel do bolso. Tinha de encontrar o Lúcio. «O seu saldo não lhe permite efectuar esta chamada, bla, bla, bla». Não tinha saldo no telemóvel. E agora? «Ó, jovem! Jovem!» Fui acordado pela voz cavernosa do bartender, que acenava e chamava por alguém, um pretenso jovem, que, supostamente, se encontrava na mesma direcção que eu. Era a segunda vez que me acordavam naquele bar. Olhei em volta e como se não descortinasse ninguém tão jovem quanto eu nas imediações, com um ar inquisitivo, virei um dedo para mim próprio. «Sim, sim, você! Venha cá!» Curioso por saber o que quereria o tipo, dirigi-me ao balcão. Teria o Lúcio bazado sem pagar?, ocorreu-me, assim, inesperado e alheio à minha vontade, este pensamento, reflexo, com certeza, da sova que levaria do segurança, consequência de não ter um tusto no bolso para pagar champanhe e aguardente velha. Chegado ao balcão, com ar hesitante, o sujeito (ele, também, um gorila gigante, que mais facilmente passaria por segurança do que por bartender) leu-me os pensamentos, sorriu e disse que não me preocupasse, «eu cá me entendo com o doutor, não se preocupe. Tome». De debaixo do balcão, sacou as chaves do meu carro e entregou-mas, «o doutor deu-mas e pediu-me para lhe dizer que está à sua espera em frente ao governo civil, na rua de cima». Balbuciando um agradecimento, ao qual o fulano replicou com um monocórdico «de nada», rodei nos calcanhares e dirigi-me para a saída. De repente, o meu telemóvel tocou, estridente, mas não o suficiente para se sobrepor à música. Saí em passo apressado, passei pelo segurança sem olhar, vesti o casaco e olhei para o visor luminoso do aparelho, que acusava o nome do Lúcio. Decidi pregar uma partida ao meu caro amigo: «‘Tou?» «Onde estás meu?» «Isso digo eu, sacana, fugiste com o meu amor, fugiste com o amor da minha vida!», gritei, cheio de uma falsa raiva, gozando o prato enquanto sentia um silêncio pesado e desconfortável instalar-se no outro lado da linha. Tapei o bocal, ri em silêncio (reparei que o segurança também sorria, à porta, percebendo o meu esquema) e, em esforço, continuei: «‘Tou, Lúcio, tás aí? Meu, vem buscar-me, ‘tou à porta do 23. Onde ‘tá o carro?» «‘Tá onde o deixaste meu melro, onde querias que estivesse?», retorquiu, revelando-se impaciente para as minhas brincadeiras. Decidi continuar, «Ok... Er... Já vou, melhor ainda, anda cá ter, vem buscar-me!» «Não posso, meu caro, estou ocupado», respondeu. «‘Tá quieta miúda, não toques nisso, entra para dentro do carro!», ouviu-o dizer, longe do bocal. Parecia que a ruiva ainda estava com ele e já dentro do carro. «Hel, meu, vem ter aqui ao governo civil e mexe-te!» «É mesmo ao lado do São Car…» «Sim, mesmo ao lado do São Carlos, mexe-te que tenho um doce para ti!» Lúcio escapulira-se do bar com ela durante o meu breve recolhimento na latrina, mas esperava por mim, afinal de contas, leal aos velhos princípios que regiam a nossa amizade. «Foda-se, Lúcio, tu e as tuas surpresas maradas, estou a caminho». Desliguei e sorri ante a surpresa do Lúcio, que já começava a adivinhar. Deitando para trás das costas responsabilidades e compromissos do dia seguinte, decidi oferecer-me uma festa de natal antecipada. Sem dúvida, esta noite apresentava uma oportunidade única.

Comecei a caminhar na direcção oposta ao governo civil, tinha de ir buscar o R7, tinha de ir buscar a chocolateira. Chegado ao local, enfiei-me no carro, saí do estacionamento e, com o pé pesado no acelerador, ignorando o chiar da embraiagem, galguei os metros que me separavam do governo civil. Quase a chegar, evitei mesmo à justa um enorme buraco, um dos muitos que decoram a baixa, e quase arranquei o espelho a um Volkswagen Miura branco, estacionado uns bons metros atrás do R6 do Lúcio. Travei a fundo ao lado do bólide, uma paragem perfeita enfeitada por um chiar de pneus e temperada com o subtil aroma a borracha queimada, abri o vidro, assomei à janela e espreitei para dentro do carro, «Então, Lúcio, esse doce é para hoje ou para amanhã?», perguntei, num tom meio carregado de ironia, meio carregado de cumplicidade. Sem responder, levou a mão ao bolso do casaco e devolveu-me a carteira, ao mesmo tempo lançando-me aquele olhar cúmplice, um olhar que desenvolveramos entre nós ao longo de muitos anos de convivência, a plantar batatas e a colher couves, um olhar que não queria dizer nada, mas que, ao mesmo tempo, queria dizer tanta, tanta coisa, permitindo-me a janela de tempo necessária para mergulhar nos olhos verdes da ruiva uma vez mais. Ela devolveu o olhar e fixou no meu o verde frio dela, numa luta para ver quem desviava primeiro o olhar. «Ahem, Hel!», Lúcio chamou-me e concedi a vitória à ruiva. «‘Bora, meu?», observei-o com atenção e constatei que, apesar de sempre beber com profissionalismo, o meu amigo estava com os copos. Ainda por cima, já instalara a miúda nos estofos em pele do seu R6 novinho em folha topo de gama. «Lúcio, achas que estás em condições de conduzir?», perguntei, expressando uma preocupação genuína pelo meu amigo. Ripostou, sarcástico, como era por vezes seu apanágio quando respondia a observações que para ele não faziam sentido, que tinha de estar, não é?, que o carro não se ia conduzir sozinho até Cascais! «Claro, meu, claro, estou só a dizer que não devias arriscar, visto que estás com o teu carrinho novo e quê… se bates, é um desastre, o teu pai vai foder-te o juízo, e que és irresponsável, e que és um bêbedo…» Vi o lábio de Lúcio reprimir um trejeito e as sobrancelhas negras fecharem-se sobre os olhos; desencadeara-se no seu espírito uma luta interior. Apercebi-me disso e puxei a corda, «Porque não me deixas levar o teu carro? Levas o meu, também não se perde muito se lhe acontecer alguma coisa». Percebi que a dúvida persistia em roê-lo por dentro. Enquanto reflectia nas minhas palavras, voltei a mirar a ruiva, mas ela parecia absorta no seu próprio mundo. «Ok, Hel, podes experimentar o meu brinquedo novo», cedeu, por fim, «mas cuidado, puto, nem um risco, tu tem cuidado!», avisou, paternalista, como se tivesse tirado a carta há dois dias. «Lúcio, sou eu, estás a falar comigo», comprimiu os lábios, algo que fazia quando concedia a vitória numa discussão, ainda duvidoso da sua derrota e ciente de que saíra a perder da situação. A ruiva não se mexeu para mudar de carro. «Estou mesmo atrás de ti», disse-me. Trocámos as chaves num aperto de mão e metemo-nos nos carros. Eu no R6, o belo do R6, a cheirar a novo, travões ABS, direcção assistida, ar condicionado, estofos em pele e uma mulher deslumbrante sentada neles. Lúcio entrou no meu carro, não sem que a fechadura da porta, da qual só eu conhecia a manha, lhe desse a devida luta, e deu à chave. Por meu lado, podia jurar que o seu rosto espelhava uma certa nostalgia, talvez por voltar a conduzir um carro tão velho. Afinal, antes do R6, nos tempos da faculdade, conduzira uma banheira não muito diferente desta. Deixando reminiscências de lado, virou-se para mim, «Como é, vamos?»

22/04/09

Capítulo X

Sem mais, como que adivinhando a deixa, a ruiva espetara-lhe a língua no ouvido e o semblante do Hel alterara-se. Muito rapidamente, demasiado rápido para um homem tão embriagado, pôs-se de pé e fugiu: «Vou à casa de banho, tenho de ir à casa de banho», afastou-se, deixando a carteira e as chaves em cima da mesa. Guardei a carteira no bolso do casaco, peguei nas chaves como se fossem minhas, contemplei a ruiva e emborquei mais um balázio de Antíqua. Estava completamente embriagado, a tal ponto que conseguia não o estar; estava tão embriagado que via tudo claro, translúcido, evidente, cristalino.


Era linda a miúda, perfeita. A fazer-se passar por vamp, que tristeza. Por dinheiro, como se não fosse suficiente tudo o resto. A fazer-se passar. Putinha. Linda. Intelectual. Fria, nem parecia o que era. E aquele cabelo, Jesus, aquele cabelo.


«Gostas de dinheiro, linda?», disparei, assim que me vi livre do Hel, muito franco, muito directo. «Gosto pois, vais oferecer-me algum é, lindo?..», replicou, com um gesto rápido da mão acariciando-me o cabelo. Não gostei do «lindo» mas, tudo bem, gostei da carícia, disse que sim com os olhos, e «talvez amor, talvez», com a boca. Dei mais um golo na minha aguardente. A voz dela, o diálogo pseudo-erudito com que nos brindara, o fumo na sala, o álcool, tudo isso me queimou as sinapses e senti-me tonto, senti a sala oscilar no seu eixo e a imagem dela distorcer-se, a mesclar-se com as luzes e os odores, cada vez mais indistinta. Fechei os olhos e respirei fundo. Estava na fronteira da consciência. Quando finalmente os abri a terra já não se mexia. Ariel era real e estava mesmo à minha frente; acendera um cigarro e fumava, parecia quase que alheada, escutava a música, maneava a cabeça, fumava e marcava o ritmo com a ponta das unhas no tampo da mesa.


Reflecti que tinha de dar travão ao álcool. Se o meu estado era aquele, qual não seria o do Hel? Era óbvio que o Hel não estava capaz de beber muito mais, aliás, devia estar a regurgitar, o que até talvez não fosse mau de todo, tudo uma questão de ver como recuperava. Senti sede.

Arrumei a aguardente, sinalizei o bartender e pedi um gin tonic para mim e outro para ela, frisando que pedia «dois gins» e não outra coisa, «nem bebida de colaboradora». Ela, toda altivez, não tugiu nem mugiu, pestanuda, fina, esticando as meias de nylon. Hmm. E o Hel, porque se demoraria tanto?


Levantei-me e, de rés-vés, sorri sardónico para a Telma, os olhos dela chispavam, era só inveja naqueles olhos azuis, mas isso não me dizia respeito, que fosse tomar no cu. Pedi crédito ao bartender, ao mesmo tempo que o subornava discretamente e o ouvia replicar, como que em câmara lenta: «Doutor, é a última vez é a última vez!» - «Pois sim meu caro, faça-me um favor, diga ao meu amigo que estou na rua de cima, mesmo em frente ao governo-civil e, entregue-lhe estas chaves, pode ser?» - «Boa noite doutor, fique descansado.»


A Telma, afastara os olhos dos meus, estava furiosa, aquela loira burra mas entesoante; ainda iria foder aquela gaja, embora não naquela noite. Naquela noite apetecia-me outra coisa, uma coisa vá, mais refinada. Dei a mão a Ariel e saímos porta fora. Cumprimentei o Segurança: «como está o tempo aí em cima, jovem?» O gajo riu, julgo até que gargalhou e desejou-me uma «boa noite, senhor doutor», sem esquecer a devida vénia, à medida que eu e ela saíamos: como era bom ser filhinho do papá, acreditem, era mesmo bom.


Por falar nisso, não podia levar a gaja para minha casa, o velho havia regressado duma «viagem» e aboletava-se em Lisboa por alguns dias. Já sabia, levava-a para Cascais, para a quinta do Hel. Era isso, com sorte, fazíamos uma festinha à maneira e sempre o ajudava.


Fui encaminhando a tipa para o meu carro, tentando caminhar em uníssono com ela, era uma rapariga nova, parecia deslocada no ambiente, demasiado efusiva para o ofício; parecia quase uma principiante, sim, era isso mesmo, era uma puta jovem e emocional e isso convinha-me, tinha que fazer daquela noite de fim de Dezembro, chuvosa, ventosa e triste, um dia memorável. Juntinhos, ela mais alta, sempre de mãos dadas, tic, tac, toe, fomos andando e, em menos de nada, estávamos perto do beco sem luz onde estacionara o R6. O 23 ficara para trás, eu estava de férias e a única coisa que me prendia ali, para além da amizade que me fizera deixar um colega esperto o suficiente para não se desbocar lá atrás, daquela bacana, da ideia de a levar até casa dele e de fazermos uma menage à trois, era ter os documentos na mala do R6; os documentos que no dia seguinte ficara de ir entregar em mãos ao Ministério dos Internos, um último recado antes de, realmente, entrar de férias.


Não me podia esquecer disso. A atmosfera da noite, revitalizando-me, lembrou-me esse facto, incomodativo. Fomos andando, ela a perguntar onde íamos, eu que íamos buscar o meu amigo e «passear» até Cascais, que havia dinheiro para ela… E ela, que sim, «tudo bem, gosto do teu amigo.»


Como a noite evoluíra rapidamente desde que saíra do ministério, após o sermão do chefe. Primeiro a loira. Depois o Hel e agora aquele “monumento”. Eram quase nove da noite quando entrara no 23, a música enchia todos os recantos vazios de pessoas, na altura ainda a noite era miúda e achara por bem ser esse o momento acertado para fazer alguma coisa de modo a esquecer todos os segredos hipócritas do ministério; eventualmente, talvez, mostrar ao Hel que havia mais mulheres no mundo do que a sua banal namoradita sem futuro.


Agora, ali estava a noite, limpa, luarenta, com a ruiva ao meu lado, de mãos dadas, que vontade de caminhar em uníssono com ela, que gozo em caminhar em uníssono com ela, até parecia quase como fora ao princípio com a minha ex-mulher, até parecia.


Ariel, assim dizia a ruiva chamar-se, estudante de «Tradução em Letras», a fazer-se séria, a rir-se, a fazer-se séria, a fazer-me cócegas na palma da mão e eu a fingir que acreditava, embora não batesse certo a história dela ser estudante, uma história demasiado rebuscada. De qualquer maneira, para o que pretendia, pouco me dava se «Ariel» era de facto puta/estudante ou puta/puta. O verniz que demonstrava acabava até por nem ser mal empregue para o objectivo que, lentamente, descendo a rua sem saída, congeminava: um belo dum bacanal, um novo campo a desbravar com o meu amigo, só esperava era que lhe tivessem dado o meu recado e que não se tivesse afogado na sanita, o pobre.


«Lúcio meu, não bebo mais, combinei amanhã de manhã com a Teresa, não posso aparecer todo fodido!», recordei, sorrindo, a onda dele, todo medroso. Como é que Ariel pudera pensar que o Hel seria uma vítima adequada à sua incursão no mundo da noite é que eu não percebia, quanto mais não fosse porque a mim é que ela despertava uma enorme cobiça voluptuosa e já o Hel, enfim, bastaria olhar para a sua camisa vermelha, bico da camisola interior encarnada, calças de ganga verde, para compreender que o rapaz era um teso; jovem e bem-apessoado, não digo que não, mas um teso, um tipo sem eira nem beira, por muito prometedor que aparentasse ser.


Chegámos ao R6 e Ariel, aparentemente espantada, melodiou: «Ena, tens um carro muito bom, isto deve ter-te custado uma pipa de massa!» Agradeci, lisonjeado, abri-lhe a porta do lugar do morto, sentou-se, pôs-se a brincar com a aparelhagem, virei-lhe costas e encaminhei-me para a bagageira. Pesquei o telemóvel por trás do tapete, liguei-o e, impaciente, disquei o número do Hel. «Onde estás meu? Isso digo eu sacana, fugiste com o meu amor, fugiste com o amor da minha vida!»


Mau, o Hel estava mais bêbado do que pensara, tinha de o orientar e daí, quase que me sentia tentado a não o fazer... Ainda há pouco a ruiva insistia com ele, ela insistia, toda carinhos para cima dele, toda mesuras, toda sorrisos e pestanajamentos. Eu alinhara, claro, o puto não percebia nada de engate, era o que era. Ao balcão, a outra, a Telma, deitava-me olhares faiscantes, não percebia se de despeito ou ainda de sedução, não tinha qualquer importância; antes do Hel chegar pagara-lhe dois copos de champanhe, a trinta euros cada e ela, depois de se ter feito toda a princípio, tirara-me o pão da boca sem mais nem menos, só queria fazer conversa da treta, a mostrar-se muito interessada, o que só contribuíra para me sentir ainda mais inquieto: «O que é que fazes na vida?.. Trabalho no Ministério dos Negócios Estrangeiros, não te interessa. Ah, trabalhas no Ministério dos Negócios Estrangeiros, é?.. Deve ser muito interessante, lidas com gente importante?..» E eu, que não tenho paciência para conversa de sala com putas, dissera-lhe isso mesmo, com todas as letrinhas: «Não tenho pachorra para conversa de sala com putas.» Logo ela me presenteou com a resposta, um mutismo frio à palavra «putas», como se sentisse genuinamente ofendida, a vaca. Acariciei-lhe o rosto e para adocicar a pílula disse-lhe que era «linda de mais para esse tipo conversa, só isso…» A hipócrita engoliu em seco e, outra vez só doçuras, apenas doçuras, insistiu na tecla: «Querido, a sério, agradas-me, fala-me mais do teu trabalho… Conta-me...»


Do meu trabalho? Era o que mais faltava, o meu trabalho era de ouro, «esconder é mais importante do que plantar couves». Topando pelo canto do olho a chegada do Hel ao 23, fitei os olhos frios de Telma e, subliminarmente, comuniquei-lhe: «Vai à merda Telma, querida, vai à procura de outro pato que este já era.» A loira gelou, mas não estava minimamente preocupado com isso, afastara-me à patrão e em menos de nada era cumprimentado pelo Hel. Depois dum intróito com uma pobre prostituta, feia, horrível, apontei uma mesa livre a um dos cantos mal iluminados, pedi dois copos de champanhe («um champanhezito Hel, à minha pala?») e logo depois entregávamo-nos ao diálogo habitual, ao jogo de xadrez que sempre se joga entre dois velhos amigos que se conhecem há tempo suficiente para fingirem que se insultam: «Como vão os pomares, paspalho? E o Ministério, energúmeno? Menos mal, e os pomares, imbecil? Mal, seu idiota, muito mal, uma praga, a minha bolsa de estudo está a filoxerizar-se! Ora, ahahah, caga nisso, bebe mais um copo, repara como a vida é bela» casquinei, apontando de largo a velha prostituta que se batera a ele e que entretanto arranjara um novo otário. Sorriu e bebeu. Pedi mais copos de champanhe, (traga a garrafa homem, «doutor Ferro, ainda deve 120 euros da semana passada», fique descansado homem, traga mais uma garrafa!)


O Hel emudecera. Fiz questão de brindar, sondando-o: «Agora a sério rapaz, como vão as coisas na Fac? Mal, muito mal meu, não sei se vou conseguir safar os pomares e acho que me vão cortar a bolsa já para o mês que vem, a doutora Cremilde não o disse com todas as palavras, mas, sabes como são estas merdas…»


«Hum» repliquei, interessado mais em aspectos técnicos que já não me diziam respeito mas que mesmo assim ainda me cativavam: «Já experimentaste enxertos estragénicos? Experimentei tudo, tudo pá, mandei vir anti-fúngicos experimentais da América, armadilhas Thepri da África do Sul, anti-bacteriológicos de espectro alargado da UE, mas nada resulta, nada, Lúcio!» Mau, o Hel estava realmente preocupado e senti compaixão pelo meu amigo mas, também, quem o mandara fazer o doutoramento recorrendo a técnicas de crescimento hortícola ainda no processo de test-trial em países mais avançados do que o nosso, test-trials de resultados - até ver - altamente dúbios?


«Olha lá, pá», resmunguei, meio sério meio na tanga, tentando animá-lo, recorrendo à nossa experiência comum, revisitando o passado, território seguro, ao contrário do presente, em que já não nos conhecíamos como dantes, coisas do ministério e de elementos alheios, estrangeiros, na universidade que ele ainda frequentava, embora não tivesse qualquer tipo de relação com os ditos: «Meu, quando fizemos crescer aquele horto de couves, três semanas antes do prazo, isso é que foi uma delícia, hã? Diz lá, foi ou não foi uma beleza?»


O Hel rira ao recordar os tempos de mestrado, quando ambos nos havíamos destacado de todos os nossos colegas de curso escrevendo um relatório exaustivo sobre os avanços que lográramos obter no crescimento molecular de vegetais para consumo humano, o qual espantara o mundo académico nacional, diga-se, e que chegara até a ter direito a nota de rodapé em programas televisivos sobre o mundo rural: «Dois jovens investigadores da Faculdade de Agronomia de Lisboa descobrem fórmula de crescimento inovadora» mas, logo percebi que ele voltara a cair no seu mutismo nublado. Isso não me conviera, que diabo, estávamos no 23, no Natal, no renascimento, nas minhas férias. Pedi mais um copo, Antíqua, mais uma, sorri-lhe ao sermos servidos como se fossemos nababos e, notando nele alguma abertura de espírito, indaguei, após o primeiro gole: «Então e a Teresa, pá, como que é vão as coisas?» As «coisas» não iam bem, nada bem: «Vai Tudo mal Lúcio, tu sabes que eu não olho para outra mulher que não a Teresa, não sabes?.. Sei?.. Não sei meu, não sei o que fazes com as tuas coleguinhas de doutoramento, ou sei?.. Sabes meu, claro que Sabes!..»


Eu, que até sabia mas que gostava de o provocar, lá lhe fui respondendo: «Essa agora, és uma besta, mas… enfim, sei, gostas da gaja, és parvo, um campónio, estúpido de todo, fiel como o caralho a quatro a uma gaja que não te merece… Mas então, o que é que se passa ao certo?..» Ele serviu de novo os nossos copos, estava a entrar na onda, a embebedar-se comigo, bebeu e avançou que o que se passava é que ela tinha «ciúmes de tudo, de tudo Lúcio; do doutoramento, da Cremilde, a Cremilde da Fac, vê lá tu, do tempo que passo com os meus amigos, do pomar e… imagina, até tem ciúmes de ti! De mim? Essa agora!» Engoli em seco e aguardei que concretizasse. «Pois pá, não é ciúmes de ti por ti, é ciúmes de eu preferir estar aqui a beber copos contigo ao invés de estar com ela», suspirara o Hel afundando-se na cadeira, com cara de cão morto à chapada. Ora, deixá-lo. Havia, sem dúvida, coisas mais importantes para tratar do que o namoro dele, o qual aliás sempre me parecera um pouco forçado, como se ele apenas estivesse com ela para não estar só.

«Hel, meu, vem ter aqui ao governo civil e mexe-te!» Ariel saíra do carro e estava de volta da bagageira. Caramba, não a podia deixar ver a arma, não convinha mesmo nada, era tipa para se assustar, no mínimo. No máximo, adeus bacanal, adeus festança. «‘Tá quieta miúda, não toques nisso, entra para dentro do carro!», ordenei-lhe, furioso comigo próprio por ter deixado tudo à vista, documentos e pistola. Encolheu os ombros e regressou ao seu lugar no carro, aparentemente impassível.


O Hel desligou, sacudi a cabeça, apaguei o telemóvel e voltei a enfiá-lo por baixo do tapete da bagageira do R6. Merda, os papéis estavam todos tombados. Foda-se, não podia misturar o trabalho com a bebedeira, não podia, tinha de me concentrar; com um gesto brusco empurrei tudo para baixo do tapete e fechei a mala.


Fazia frio, caía uma chuva miúda. Tratava-se da realidade. Entrei pelo meu lado do R6. «Olá miúda» murmurei, a fazer-me doce, mas pleno de insinuações perigosas. «Já acabaste de falar com o teu amigo? Já, pois, vem aí ter e vamos fazer uma festa em Cascais, agrada-te?», inquiri à queima-roupa. «Sou toda tua», replicou, enxuta, fria, sem sentimento na voz. Toda minha, ou toda do Hel? Resvalei desastradamente para cima dela à procura daqueles lábios carnudos, só que me escapou, ágil, para o banco de trás. Resolvi mostrar-lhe dinheiro. «Gostas de dinheiro, miúda?» Estranho, regra geral quando fico assim as putas não gostam, mandam-me à merda a mim e ao meu dinheiro, mas esta não: «Gosto, mas ainda gostava mais se fosse a três…» Engoli em seco: «Quanto? Quanto pela noite toda?» E ela fez o seu preço.


Acenei que sim, mas por dentro senti-me agoniado e deu-me uma vontade enorme de pura e simplesmente me ver livre dela; a gaja era problema, podia sentir isso, eu snifava problemas à distância, a tipa não fazia sentido. Tudo estava errado. Ia para falar quando o decrépito R7 do Hel, a chiar a suspensão, se imobilizou ao lado do R6 e, da janela do condutor, o Hel, sacana, me saudou numa vozinha que ressoava ironia e alcoolismo: «Então Lúcio, esse doce, é para hoje ou para amanhã?..» Sem responder, levei a mão ao bolso do casaco, com os olhos fiz-lhe o tal do nosso olhar cúmplice, dando-lhe tempo suficiente para mergulhar nos olhos verdes da ruiva que assolara à janela do R6. Percebi que estava a gostar. Calmamente, de sorrisinho cínico nos lábios, devolvi-lhe a sua própria carteira.

21/04/09

Ariel - Capítulo XI

Larguei o Lúcio com um suspiro de alívio, que se despenhara na minha cama. Não era agora mais do que um peso morto. Debatia-se com o mal-estar, soltava alguns gemidos e a todo o momento mudava de posição, tentando encontrar um nicho confortável para fechar os olhos de vez, pelo menos, durante esta noite. Conhecia-o de ginjeira. Um gajo como o Lúcio não comia, antes se alimentava de tabaco e café, com álcool para a sobremesa. De certeza que não comera nada o dia todo e o resultado estava à vista. Era um estilo de vida que não conseguia acompanhar; a minha incursão no bar era prova viva disso. «Ele vai ficar bem?», perguntou a ruiva, por trás de mim, com um tom de voz, porém, vazio e despojado de emoção sincera. Respondi-lhe que sim, que só precisava talvez de umas horas de sono. Sentei-me ao lado dela e dei um golo no whisky. Saboreei. Felizmente, enchera o meu copo antes de o Lúcio destruir o bom do Chivas. Comecei a pensar: com o Lúcio K.O. e a mulher só para mim, talvez fosse hora de lhe fazer uma visita guiada a um anexo da quinta em que fizera uns arranjos e que reservava para momentos de maior privacidade, «para quando chego bêbado e não quero armar estrilho Lúcio, ahahah!», revelera ao meu amigo, no Verão, enquanto jogávamos um partida de xadrez ao abrigo da sombra fresca da videira, de calções e chinelos, refastelados, ouvindo blues e esticando o braço apenas o suficiente para ir arrancando bagos. A voz do Lúcio arrastando o meu nome pela boca fez-me olhar para trás. Percebi que passava mal, os olhos vítreos incapazes de focar. Que belo bico d’obra em que se meteu. Não gostava nada de ser ele quando acordar. Voltei-me para trás e disse-lhe que descansasse um pouco, que de certeza era por não ter comido nada. Amanhã, «isso já passou». Fechara os olhos antes de ter terminado de falar. De súbito, senti a ruiva colocar a mão sobre a minha perna, deixando-a escorregar pela minha coxa. Agradavelmente surpreendido, e já preparado para empregar todo o meu charme, exibindo um sorriso convidativo e descontraído, voltei o olhar para ela, mas o seu rosto caiu sobre o meu e os longos finos fios de cabelo vermelho explodiram-me no olhar. O seu corpo, porém, parecia mole e não reagia às minhas mãos. Apercebendo-me da intenção dela, segurei-a com mãos firmes e ajudei-a a encostar-se no sofá. Estava pálida e desculpava-se, tinha tido uma tontura. Via-se o cansaço e o excesso de álcool espelhando-se no rosto dela. Mau!, também ela? Via a noite vir por aí abaixo e isso não me agradava. Sem o Lúcio, pronto, a noite ainda tinha solução, tinha a mulher, tinha bebida, tinha privacidade. Agora, sem a miúda e com o Lúcio fora de combate é que a coisa se revelaria um fiasco absoluto. Nada podia fazer pelo meu amigo, senão dar-lhe um tecto para curar a bebedeira, mas, escrupuloso por vezes até de mais, sabia que podia fazer alguma coisa por ela, para evitar que chegasse ao estado do Lúcio. Além disso, só tinha aquela cama e não achei boa ideia acondicioná-los entre os mesmos lençóis. Hm… não, pois não. Talvez a pudesse deixar a dormir no anexo. «Queres deitar-te? Tenho um sítio onde…?» «Não!... Não, eu... não posso e… ainda me vou sentir mal. Só preciso de apanhar ar, mais nada», entabulou, de repente, mais desperta. Olhei pela janela e percebi que a chuva tinha passado, se bem que ainda ventava (sem dúvida, se era ar que ela queria apanhar, teria de sobra), o que, aliado à escuridão que preenchia todos os espaços na quinta, me retirava qualquer vontade de fazer um passeio nocturno. Encarei-a, mas os seus olhos rogavam-me, como uma criança que quer muito alguma coisa e parece que vai desatar a chorar se não o fizermos. E, como uma criança, só lhe faltava saltar de felicidade, quando os olhos brilharam de gratidão, em resposta ao meu consentimento. Pediu-me se podíamos ir de carro. Sabia que eu morava perto do mar e a maresia fazia-a sempre sentir-se melhor. Adorava o mar, confessou, parecendo ganhar um boost de energia. Lancei as mãos às chaves do R7 e ela, mais rápida do que esperava para quem quase desmaiara, colocou a mão sobre a minha, fazendo-a cair como uma pena, deixando-a por instantes, retirando-a depois, raspando a ponta das unhas vermelhas sobre as costas da mão. Estremeci por dentro, mas restringi a emoção. A miúda afectara-me, muito, demasiado. Só me apetecia aproveitar a deixa e levá-la para o anexo, mas, era escrupuloso, demasiado, por vezes. Caralho! «E se levássemos o carro do teu amigo… Hel?» Pronunciara o meu nome com afecto, quase com carinho, a voz ao pronunciar o meu nome escorregou-me pelo ouvido, melíflua, uma sinfonia perfeita. Por um fragmento de segundo, odiei-a. Estava enfeitiçado, raios, enfeitiçado! Noutras condições, se alguém me fizesse um pedido destes – levar o carro novo do meu melhor amigo, o R6!, sem autorização – jamais consentiria. No entanto, naquele momento singular, tentava arranjar argumentos para finalmente pegar nas chaves do R6. Afinal, conhecia bem a zona e a praia não era assim tão longe quanto isso. Além do mais, grande parte da bebedeira escoara-se pelo cano da retrete do 23. Sentia-me leve e desperto. Sem retorquir com palavras, larguei as chaves da minha chocolateira e peguei nas do bólide. O meu inconsciente lançava-me reprimendas severas e, estranhamente, assumia a voz do Lúcio: Se me fodes o carro, puto, se mo fodes…! Não resisti a atirar um soslaio para os lados da cama. Os seus lábios estavam selados, abrindo-se somente para deixar sair um ou outro ronco ocasional. Agarrou-se ao meu braço, satisfeita, e saímos.

Pressionei os comandos do R6 e as portas concederam-me o acesso com um sinal luminoso e um «bipbip». Ela preparou-se para se instalar de imediato nos bancos de trás e gracejou, dizendo-me que não queria ir ao meu lado, não fosse distrair-me e tirar os olhos da estrada, como era meu hábito. Ri e disse que podia fazê-lo na mesma. Abri a porta, mas mudei de ideias. «Vou só ali, já venho». Ela percebeu e disse que não ia a lado nenhum. Pus as chaves no bolso e, apressado, fui procurar um canto. Não mijava desde que saíra da faculdade e apercebera-me dolorosamente desse facto: o álcool acumulara-se-me na bexiga, que inchava, prestes a explodir. «O que é que estás a fazer?», puxei para mim a ruiva pelo braço (ao regressar do meu momento de privacidade), que apanhara a remexer na bagageira, gritou de susto e gaguejou uma justificação, que não era nada… nada disso, tinha reparado que a porta da mala estava mal fechada, estava só a verificar, a fechar melhor. Estudei o interior. Papéis, ferramentas, um colete… Olhei para ela. Estava assustada. Talvez ainda não estivesse tão lúcido quanto isso. Que podia ela querer da bagageira? Não parecia haver coisa alguma de interesse. Comecei a afrouxar os dedos e soltou-se, esfregando o braço. «Desculpa… eu, eu voltei… vi-te a… parecias estar a mexer e…», principiei, envergonhado. «Não faz mal, eu percebo, estavas a olhar pelo teu amigo». Forçou um sorriso e entrou. Sentei-me ao volante e fechei a porta.

Enrolei um cigarro. «Dás-mo?» Passei-lho e principiei o processo. Meteu conversa comigo, disse-me que eu não parecia do tipo que solicitava os serviços de uma mulher como ela. Solucei uma gargalhada, com o filtro entre os lábios, e retorqui, empregando a mesma frieza que ela dispusera comigo ao longo da noite, que, então, era porque ela não parecia uma mulher do género de que ela tanto se esforçava para me convencer. Aliás, tinha a certeza disso. Acendi o cigarro. Virei-me para trás, com um sorriso carinhoso, para lhe dar a entender que brincava. O rosto dela espelhava um misto de confusão e alívio. No fim, rimos os dois, tacticamente. Senti que reconquistara o meu lugar hierárquico nos eventos daquela noite tão invulgar. Dei à chave e senti-me ser repossuído pelo R6. O carro parecia estar imbuído da personalidade do Lúcio e sentia uma dose da confiança dele tomar o controlo sempre que me sentava ao volante daquela máquina. Com um sorriso nos lábios, depois de uma longa passa que me soube pela vida, arranquei rumo à praia, sempre na mecha, mas não muito, não queria foder o carro ao Lúcio, não é? Não me fodas o carro, puto…! Ri em silêncio.

Tagarelámos sobre banalidades, ela tornara-se muito conversadora. Descontraímos e falámos de assuntos inócuos. Revelei-lhe o que fazia, falei-lhe do doutoramento, que estava a ir pelo cano abaixo. Brinquei com a situação. Ela contou-me uma história sobre estudar letras e não estar ainda acostumada à vida da noite. Acreditei, porque não? Em poucos minutos, num avanço suave e sereno pela estrada até à praia, riamos com sinceridade, ela pela primeira vez naquela noite, sem insinuações, sem jogos de poder, no fundo, não interessava: percebera há muito que a noite não passaria dali. Ela revelava uma inteligência aguçada e um humor de uma mordacidade à toda a prova. Era raro encontrar mulheres assim. «Obrigada pela paciência que tiveste comigo, já estou bem melhor». Recostou-se e respirou fundo o ar frio da madrugada. Daí a um par de horas, amanheceria e a vida voltaria à engrenagem habitual. Suspirei. Acabara outra vez por ser o bom da fita.

À medida que devorava os metros ao longo da estrada, começava a ouvir o rugir das ondas negras esmagando-se contra a fortaleza de rochas que coroavam a praia e a inspirar a maresia que se insinuava e se intensificava, enquanto a distância entre o carro e o mar se esbatia. Caláramo-nos e o manto silencioso que nos envolvia era confortável. Aproximávamo-nos da praia. A estrada que a costeava, além de estreita, apenas com espaço suficiente para dois carros, de preferência pequenos e esguios (quantas vezes não ficara preso no trânsito devido a dois autocarros que se cruzavam e insistiam em passar ao mesmo tempo), estava esburacada para além de qualquer remédio, vaticínio de um despiste certo, se o caminho não me fosse já habitual e se não reduzisse para uns confortáveis 50 Km/h. Claro, o facto de ter nas unhas o R6 também me incutia uma maior sensação de segurança. Naquela semi-obscuridade lunar e com a bebedeira a que já me presenteara esta noite, dei graças por não me ter aventurado por aqueles caminhos rolando sobre os pneus quase carecas do R7. Ao desencostar o pé do acelerador, senti dois faróis atrás de mim, distantes, ainda, mas com o olhar luminoso fixo em mim. Reduzi mais um pouco. Reduziu também, preocupado em manter a distância que nos separava. Talvez não passasse de um condutor zeloso, que não conhecia o percurso, senão pela reputação dos inúmeros acidentes que ali tinham lugar, e que não queria aproximar-se. Contudo, sentia-me inquieto, um arrepio trepou-me pela espinha acima. Olhei pelo retrovisor e pisei o pedal com mais convicção; o ponteiro subiu lentamente dos 50 para os 60 quilómetros. Notei que os faróis não se afastavam, antes pareciam determinados em manter sempre o R6 ao alcance da vista. Custava-me a acreditar que estivéssemos a ser perseguidos. Pelo espelho, olhei para a ruiva, que me fitou com olhos emudecidos, com um silêncio tão opressivo como o meu. Houve entre nós um clarão de entendimento. Havia alguém no nosso encalço?, seria possível? «Por acaso…?», comecei; sentia que ela me escondia alguma coisa, que escondera a noite toda alguma coisa, e preparava-me para extrair algumas respostas. Não me agradava ser perseguido por estradas desertas a altas horas da noite. Mas ela interrompeu-me com um abrupto «Acelera!» Como não obedeci com prontidão, com agilidade felina, passou para o lugar do morto e pisou-me o pé contra o acelerador: «Vai, acelera!» «O que se passa? Sabes quem é?», perguntei, enquanto o carro torpedeava noite dentro. «Acho que sei…», respondeu, com a voz a tremer. A estrada era agora feita de buracos e areia, devido ao forte vento que se fazia sentir e que cobria o percurso com um espesso manto arenoso. «Achas?», perguntei, exasperado, quando me vi forçado a travar e a guinar para manter o controlo do carro que resvalara em direcção aos penhascos. «Não me apetece morrer hoje só porque achas que sabes quem está dentro daquele carro!», ripostei, furioso. Voltei a observar o nosso misterioso perseguidor e sentia-o perscrutar-nos por trás da luz, frio e implacável, o carro agora soltando roncos furiosos na tentativa de acompanhar o R6, tarefa, diga-se de passagem, que não era fácil. Naquela estrada e com tão pouca luz, fosse quem fosse, se se conseguia manter na minha peugada, era bom e sabia o que fazia. «É ele, só pode ser ele! Tens de me tirar daqui!», gritou, implorante, agarrando-me o braço. A voz dela, por vezes fria, por vezes convidativa, há pouco tão sincera, tresandava a medo e a pânico. Reparei, pelo canto do olho, que resistia às lágrimas que teimavam em acorrer-lhe aos olhos. «Se o despistares, conto-te tudo, tudo, talvez até possas ajudar, mas acelera mais, acelera!» e o ponteiro subiu para os 110. Boa, era o que me faltava. Um dos meus motes era não me meter nos problemas alheios e, agora, via-me no carro do meu melhor amigo, com uma mulher tão enigmática quanto atraente ao lado, perseguido no escuro por um psicopata qualquer. Não sei que tipo de gajo podia instilar-lhe tanto medo, mas também não planeava ficar nas redondezas para descobrir. Mesmo que me quisesse descartar, se fosse apanhado, levaria por tabela. Respirei fundo e reuni todas as minhas forças para me concentrar. Ela percebeu e lembrou-se de puxar o cinto.

A perseguição durou ainda uns bons dez minutos. O facto de se tratar de um único caminho tornava impossível despistá-lo e obrigava-me a depender somente da velocidade, pelo menos, até que a estrada se desenrolasse em mais percursos. Frenético, com o olhar preso no caminho tenebroso e com as mãos presas no volante, a noite tornava-se um borrão sobre os meus olhos; senti o R6 forçar a caixa para além do limite.

Abri os olhos, incerto do que se passava, e olhei para o lado. A ruiva esfregava o ombro, gemendo, e parecia atordoada. Abri as mãos, que se haviam encrespado em torno do volante, e senti as palmas suadas descolarem da borracha e os nós dos dedos estalarem. Estávamos parados. O carro passara por outra passadeira de areia, desta vez, demasiado depressa; travei, guinei, fiz o jogo de caixa, mas acabámos por derrapar e sair da estrada. Num último sopro de presença de espírito, consegui evitar a morte certa em direcção ao mar, escarpa abaixo, e lançar o carro para a esquerda, em direcção à vegetação, até que, depois de rodar sobre o seu eixo sem parar, estacou, mesmo rente a uma árvore. Por pouco não me esmagara contra o tronco. Constatei que a minha companheira estava bem, apenas assustada e atordoada, e voltei o pescoço para o barulho de motores que cessavam. Estava perto o suficiente da estrada para a ver claramente, quando os dois carros se aproximaram do R6 e travaram. Espera lá! Dois carros? Do carro que nos perseguia, portentoso e robusto, saíram dois vultos. Do outro, mais pequeno, que pelos vistos se ocultara atrás do primeiro, saiu outro. Estavam a poucos metros de nós, juntaram-se, acenderam lanternas e começaram a avançar. Os focos de luz incidiam sobre as nossas caras e percebi, então, sob o brilho dos feixes, a extensão do terror dela, pálida e transida de medo. Estavam agora a pouco menos de três metros, quando estacaram e ouvi uma voz rouca: «Vá, conseguimos vê-los ai dentro. Se saírem a bem, vai ser mais fácil». «Mas, se quiserem sair a mal, tanto melhor». Acrescentou outro e riu, juntando-se à sua gargalhada a do primeiro tipo. Não havia fuga possível, nunca conseguiríamos sair do carro e fugir sem que nos deitassem as patas. Segurei a mão dela, trémula, gélida que nem a morte imaginava tão fria, e tentei tranquilizá-la, «vamos safar-nos desta, Ariel, vamos arranjar maneira…», mas era inútil, a minha voz entrecortada pelos soluços dela e o meu coração descompassado revelavam-lhe a mentira óbvia. Entreolhámo-nos e saímos do carro, postando-nos à frente das três luzes, que me obrigavam a semicerrar os olhos. Sentia o vento frio do mar bater-me na cara, escutava as ondas surdas no seu ataque incessante contra os rochedos, e, misturado com o cheiro a sal, um estranho aroma subiu-me pelas narinas, primeiro desconhecido, em seguida familiar, mas que depois me viria a aperceber de que era mentol. O vulto do segundo carro avançou uns passos, deu uma longa passa no cigarro e dirigiu-se aos outros dois. Uma voz de mulher, corrosiva, chegou-me aos ouvidos: «Vamos, rapazes, nada de violência. Não vêem que eles estão a colaborar, até saíram do carro, como tão educadamente pedimos». Desataram os três a rir, até que, do primeiro carro, outro homem se ergueu, «Tragam a mulher, não temos tempo a perder», tranquilo, com uma voz que, noutras circunstâncias, classificaria como cordial; era ele que claramente puxava os cordelinhos. Que merda!, quantos mais sairão dos carros!?, pensei, sentido calafrios correrem o corpo, dos pés á cabeça, da cabeça pela coluna abaixo, pelos braços, suando em bica, apesar do vento frio, dando comigo a pensar que ainda me ia constipar; engraçados os caminhos por onde a mente nos leva quando o medo é tão opressor que não há outra coisa a fazer senão enfrentá-lo ou escondermo-nos debaixo de uma pedra. A meu lado, Ariel estava petrificada. «Meninos, divirtam-se!», declarou a mulher. Deu uma última passa no cigarro, atirou-o para o chão e foi para junto do quarto elemento. Vi os dois vultos unirem-se na penumbra, sob a lua empalidecida pelas nuvens, como se se beijassem.

«Vou eu ou vais tu?», perguntou um dos homens munidos de lanternas. «Podes ir tu, vê-se que mal te conténs». Ele agradeceu a oferta e avançou para nós. Estacou. Rangi os dentes e fechei os punhos. O bruto fechou a mão simiesca sobre Ariel, puxando-a com tanta força que parecia apenas querer levar-lhe o braço, deixando o resto para trás. «Anda, o chefe está à espera». Instintivamente, lancei a mão ao outro braço e a luta que se seguiu foi de pouca dura. Assobiando o ar, um punho esmagou-se contra o meu estômago, torcendo-o e contorcendo-o, caí de joelhos, dobrado e vomitei tudo, lutando para respirar, até só sair bílis. Olhei para cima e vi que o homem se afastava com Ariel, arrastando-a pelo braço, que se começara a debater como uma louca. Chegada ao chefe, voltou a cair num mutismo lívido. Ouvi o bater de uma mão no rosto; ele desferira-lhe uma chapada e entregara-a à cúmplice. «Amarra-a e enfia-a no carro! Vai contigo», ordenou, impiedoso e resoluto, porém, calmo o suficiente para dar a sensação de que pedia a alguém que pusesse as compras no carro. Queria agir, queria ir lá e partir-lhe a o nariz, os dentes, a cara, os ossos todos, mas os meus pés pareciam ter-se enraizado no solo. «E o outro?», perguntou a mulher desconhecida. «Eu sei que não é ele, mas… não podemos permitir que se vá embora. Matamo-lo?»

Era agora, era o fim, ia morrer, a cortina ia descer, ia morrer sozinho, no escuro, numa estrada abandonada! Ouvi dizer que, nos últimos momentos de vida, esta nos passa diante dos olhos. É mentira. A única coisa que naquele momento me passava diante dos olhos era um grande vazio, de ideias, de reacção, o cérebro cessara o funcionamento, repassado pelas emoções. Por si só, as pernas começaram a recuar uns passos. Ouvi um estalido e parei, em pânico. Vira suficientes filmes de acção para saber como soava uma arma ao ser engatilhada. O manda-chuva aconselhou-me a ficar quietinho no lugar. Asseverou-me que era um bom atirador. Claro, que se eu lhe quisesse dar o gosto de uma fuga, estava à vontade. «Por quem nos tomas, rapaz?», ironizou, divertido. «Não te vamos matar, não te preocupes… não agora, não aqui, hahaha! Temos apenas alguns assuntos pendentes a resolver com a tua amiga, é tudo», declarou, sardónico. «Uma vez que a encontramos na sua excelsa companhia e com um carro que não lhe pertence, como compreenderá, faz agora parte integrante dos nossos negócios, bom senhor». Abriu a porta do carro e estendeu a mão: «Vamos?» Sentia-me estupidificado. Mais um pouco e o tipo convidava-me para jantar; na calha, ainda me oferecia sobremesa e café. «Chefe, podemos só dar-lhe uns tabefes, para o aclimatar à nossa presença?», perguntou um dos gorilas, expectante da resposta, como uma criança traquina e impaciente. «Hm…», o chefe debatia-se com a ideia, «Hm, bom, vá, está bem, agora que o vento corre de feição e que tudo se vai resolver, pode ser, divirtam-se», falou, com bonomia irónica e indulgente. «Mas!...» advertiu, silvando, «Não se deixem levar, quero-o vivo e em condições de falar! Isto vale sobretudo para ti, ouviste, Tubarão?», advertiu o chefe um dos homens, que logo anuiu, asseverando-o de que assim seria. Quem raio tem a alcunha de Tubarão?, pensava, logo descortinando que a resposta não se omitiria durante muito mais tempo.

Engoli em seco. Os dois brutamontes aproximavam-se como se fossem espectros… espectros estalando os punhos do tamanho de bigornas; e nenhum deles era parecido com um tubarão. Num lampejo de lucidez, pensei em ligar ao Lúcio. Se este atendesse e ouvisse o que se estava a passar, talvez conseguisse ajuda, mas, quase no mesmo instante, lembrei-me: merda, não tinha saldo! Mesmo que tivesse, o Lúcio ainda não devia estar refeito da soneca que ficara a fazer na minha cama. Uma enorme vaga de impotência varreu-me a mente. Não restavam soluções e a fuga era impossível. Já estava de pé e à espera, pronto para me defender o melhor que sabia e podia, os dois espectros pairando sobre mim, perto o suficiente para lhes ver os olhos coruscantes.

20/04/09

Capítulo XII

Foi o piscar de olhos mais longo da minha vida, estou convicto, embora não tenha por hábito contar quantas vezes os outros piscam os olhos nas suas vidas, quanto mais agir dessa maneira na minha, mas lá que me marcou, acho, não, não acho, tenho a certeza de que sim, foi um piscar de olhos que me marcou e a prova é que não me esqueci dele: durou o suficiente para constatar, pelo canto do olho, o canhoto, nas entrelinhas do diálogo abafado, sinuoso, que não me chegava do plasma, era certo, a mão de Ariel, subtil, arraposada, ágil, a deslizar pelo entre-pernas do meu amigo.

Esse sim, esse momento, fora a gota no copo da água, ou melhor, nos olhos vidrados de Chivas, Antíqua, Pilsener, Dom Perignon, etcoetara. Pisquei os olhos e fechei-os, mergulhando quase de imediato na inconsciência; quando os voltei a abrir, estava sozinho.

A miúda e o Hel, abandonando-me ao torpor alcoólico da cama onde ele, solícito, me deitara, haviam-me deixado só, completamente, os bastardos, tinham-se pirado sem dizer água vai e sabe-se lá para onde. Ergui a cabeça a custo, sentei-me na borda da cama, mastiguei em seco, a boca a saber-me a papéis de música e acendi um cigarro, mal disposto, carrancudo.

Lá fora, a chuva, miúda, pontuava o ritmo da minha respiração, também ela inconstante. Estava mal, estava acordado, tinha fome, e fora levado, como um principiante. Para além disso, sentia sede; a minha garganta estava mais desértica do que o Saará, nem uma gotinha de saliva, tinha de beber qualquer coisa, tinha mesmo.

Então, pus-me outra vez a mastigar em seco, ainda sentado na borda da cama, apalpando os bolsos, certificando-me de que não faltava nada, tentando organizar as ideias, orientar-me num ambiente que, não me sendo totalmente estranho, também não me era conhecido de todos os dias. Os estupores, reflecti amargamente, erguendo-me, escorregando de novo na borda do leito, procurando avidamente novo cigarro, alguma coisa que me tirasse aquele péssimo hálito, alcoólico, fanado, da boca.

Os estupores, reflecti outra vez, desta feita, com um timbre vingativo. Respirei fundo. O pior de tudo é que não tinha escova de dentes. Bem, poderia usar a do Hel, mas isso até a mim me metia nojo, quanto mais conjecturar sobre o tema. Respiguei o couro cabeludo, fiz caretas, de boca ainda completamente enxuta, abrindo o olho direito, focalizando ambos e procurando racionalizar a situação. Precisava de comida, era o que era.

Pelo menos, alguém se lembrara de deixar uma luz acesa. Já não era mau de todo. Ergui-me, resoluto, dei a volta à cama e passei pela mesa onde o Hel assentara o seu plasma novinho em folha. Sabugo, tantos queixumes e até dava para uma plasma large screen, sabugo.

Uma campainha de alarme saltou e lembrei-me das minhas chaves, onde estariam? Fora ali mesmo, na mesa do plasma, que as pousara, juntamente com as chaves do R7 do Hel; essas, lá estavam mas, das minhas, nem sinal.

Caramba, queriam ver que o Hel, pensei, que o Hel…, refocilei, mais e mais arreliado, sanguinolento, desconfiado, ressacado, vingativo. Por baixo das chaves dele estava um papel, notei, um papel encimado por um título, «Pa ti, Lúcio!». Sacudi a cabeça, peguei no papel e reconheci a caligrafia. Obviamente, fora rascunhado à pressa, obviamente. Pois sim, sabia de alguém que me devia sérias explicações. Aproximei-me do candeeiro e pus-me a decifrar o conteúdo da mensagem: «Meu caro, levei o R6, sorry, “ela” queria ir passear, apanhar ar… Abraço, voltamos antes de ser dia». Pulha, mil vezes pulha, o canalha, aquele sabugo levara-me o carro e, não satisfeito, a miúda também.

Havia de pagá-las, ó se havia, murmurei, enraivecido, sentindo-me tentado a atirar com a porcaria do plasma ao chão; foi uma sorte não o ter feito mas lá me controlei, amarrotei o papel, deitei-o para o chão, enfiei as chaves do R7 no bolso e dirigi-me à cozinha.

Comida. Comida e bebida, precisava de ambos, antes de decidir qual o curso de acção mais adequado a tomar, face àquela traição insofismável. Abri o frigorífico e dei de caras com uns restos de carne assada, com brócolos e batatinhas. Maravilha, alguém iria ficar sem almoço no dia seguinte, mas isso não me dizia respeito, ladrões de engates e de automóveis não me mereciam qualquer consideração. Tirei a travessa do frigorífico, borrifei tudo com maionese, duma gaveta saquei guardanapos e encaminhei-me para a saleta onde o Hel guardava a sua recém-adquirida garrafeira pessoal. O pulha ia pagá-las, ó se ia, e com todos os juros. Abri o armário e pus-me a retirar garrafas; por fim, lá encontrei uma pérola: “Duas Quintas”, tinto, reserva de 74. Mas havia mais, havia mais. A última de todas las botellas era uma surpresa, até para mim: Marquês de Rioja, branco, 1983. Mau, o menino esmerara-se, afinal a bolsa de estudos dele não devia ser má de todo, ou isso, ou andava muito poupadinho: só entre aquelas duas garrafas, por alto, não contaria menos do que um mês de salário no Ministério.

Porreiro, a vingança servia-se a frio; tudo era perfeito, reflecti, casquinando, a única coisa que me faltava era um saca-rolhas. Ávido, enfiei pela garganta uma fatia de carne assada, certificando-me de que deixava escorregar para o chão uma generosa dose de maionese, com o pé fiz questão de a esborratar em várias direcções, fui à cozinha, voltei com um copo e com um saco rolhas, sorri, abri ambas as garrafas, deixei-as respirar, e servi um copo a transbordar: “Duas Quintas”, parecia-me prometedor, para começo de vingança. Sentando-me no chão, dediquei todas as atenções ao meu repasto de carne assada com batatinhas, brócolos e maionese, regando-o profusamente com o “Duas Quintas”. Ah, como era belo o mundo, como era bom o vinho do Hel!

Eles haviam-me deixado, algo que não se fazia, reflecti enquanto mastigava e empurrava com o vinho; haviam-me deixado, completamente amassado e com um peso na cabeça maior do que o cume do Evereste, mas agora estava a recuperar, fruto do calor do “Duas Quintas”, do gostinho das batatinhas e da carne assada, dos brócolos fresquinhos, degustando, recuperando, reflectindo, sentindo-me renovado, outra vez bem-disposto, pronto para mais um round. Ah, iam pagá-las, ó se iam! O vinho era bom, mentira, não era bom, era supimpa, do melhor que me fora dado a provar nos últimos meses!

Satisfeito, emborquei o último resto da garrafa, dei à consideração do estômago o último resto da carne assada, poisei o prato, busquei um cigarro, acendi, inspirei uma longa passa, e senti-me bem, recomposto, feliz, lúcido. A única chatice era que estava todo sujo de maionese; tinha os dedos peganhentos.

Poisei o cigarro directamente no soalho, fazendo figas para que deixasse marca antes de se consumir, e contemplei a garrafa de Marquês de Rioja. A última vez que cobiçara uma daquelas fora em Bordéus, era ainda novo, há uns dez anos, na companhia do meu pai. Por falar nisso, o velhote não andava bem ultimamente.

Estava na minha casa, chegara estafado da viagem ao estrangeiro e viera acoitar-se comigo. Eu não era um bom filho. Desde que ele chegara, passara no máximo dez minutos com ele. Abrira-lhe a porta, três dias antes, indicara-lhe o armário das toalhas e dos lençóis, o quarto que reservara para ele e, praticamente, não o vira mais desde então; sim eu não era um bom filho.

Raios fodessem o velhote, amava-o é certo e ele fazia tudo o que podia por mim, também era certo, mas… Eu não era um bom filho, na volta, nem era um bom diplomata, nem sequer um assessor digno do nome, «que estava ali apenas para servir de elo de ligação com o secretário do Ministério dos Internos»; tão pouco saberia fazer florir um bom horto de couves e, se calhar, nem um bom amigo era.

Senti-me triste. A saleta do Hel estava toda porca e eu todo sujo, todo lambuzado de maionese. Bem, ponderei, que se fodesse. Cá se fazem, cá se pagam: com que direito me levara o carro e a Ariel? Ainda se fosse só a Ariel, vá que vá, não me chatearia tanto, mas o R6! O R6?

No fio condutor desse pensamento lembrei-me duma coisa desagradável. Algo que sempre estivera presente na minha cabeça, mesmo antes de começar a beber. Ainda não estava de férias e na bagageira do R6 tinha coisas que não me podia dar ao luxo de ver extraviadas. Coisas de que necessitava no dia seguinte. Não, de facto, não podia ser assim, tinha de pensar sobre o caso, onde estaria o grandessíssimo filho dum comboio de putas? Peguei no cigarro, levei-o aos lábios e pus-me a mexer de novo para a cozinha, levando comigo a garrafa de «Marquês». Merda, tinha aberto aquela porra e não fazia tenção de a beber. Ao chegar ao lava-loiça resolvi molhar as mãos. Abri a torneira e nada, aparentemente, daquela torneira não escorria gota de água alguma; teria sido cortada? Teria o Hel problemas com a empresa de abastecimento de água de Cascais? Matutei ser impossível saber, encolhi os ombros e ainda tentei forçar a torneira, mas nada, nem uma gota. Paciência, ponderei, já que abrira a garrafa de «Marquês», branco, convinha não ser racista e aproveitá-la.

Sorri: para alguma coisa o velho néctar dos deuses que os espanhóis desde há séculos apuravam serviria. Contemplei a garrafa, o rótulo a torneira sem água e decidi-me. Lavei as mãos, à grande, à aristocrata; era vinho branco pela pia, pelos armários, pelo chão da cozinha. E o cheiro, oh, e o cheiro!

Comecei a senti tonturas, vertigens, pior, a sentir tonturas e vertigens acompanhadas por cãibras nos intestinos. Felizmente, intui o caminho para o quarto de banho. Arreei as calças e sentei-me, aliviado. Ali fiquei, tranquilamente, de novo sóbrio, inspirando, expirando, às escuras, aliviando-me, lentamente.

Assim me encontrava, quase sereno, quando ouvi barulho vindo da porta. Alguém tentava entrar, com pouco talento, já se sabia, o Hel deveria vir bêbado, só podia. Limpei-me, não puxei o autoclismo, puxei as calças e meti-me à escuta, pronto para os surpreender. Diabo, o Hel devia vir mesmo grogue, não atinava com a fechadura nem por nada.

Finalmente, a porta da rua abriu-se e entraram. Mantive-me imóvel, que risota seria quando os surpreendesse… Caminharam ligeiros pela sala de entrada, bateram pelo quarto e pela saleta e estacaram na cozinha. Eu era só risos, deviam estar admirados de não me encontrarem. Sentia-os, pregados na cozinha, e eu, ainda, no quarto de banho, às escuras. Sorri de novo, já iriam ver o gostinho que o fado tinha, eheheh…

Então, ouvi uma voz que não era a do Hel nem, tão pouco, a de Ariel: «Não está ninguém, devem ter ido todos juntos!» Aquela voz masculina não era a do meu amigo, algo estava errado, quem seriam aqueles tipos? Agachando-me, espreitei: da meia luz que vinha da cozinha, descortinei dois homens, dois brutamontes e um deles conhecia-o de ginjeira de outros carnavais: era o “tubarão”, por causa do seu proeminente maxilar, o lava-copos, o adjunto do bartender do 23, que fazia aquele melro ali?

Tive medo e quase dava tudo a perder quando recuei, embatendo quase surdamente na sanita, assustado. Não ouviram, felizmente. Procuravam alguma coisa ou alguém, não percebia nada, aqueles dois eram da pesada, isso percebia, percebia até bem demais. «Que grande farra, olha para isto, é vinho pelas paredes e tachos pelo chão, que grande farra, que grande farra!» grasnou o baixote, guloso, patacoando para aquele que eu conhecia como o «tubarão». Este, bem pelo contrário, continuava imóvel, estacado no centro da cozinha, avaliando as proximidades, snifando, com cara de quem pusera os seus dois únicos neurónios a funcionar, todo ele aspirador, com tromba de elefante enjoado: «Esse cabrão do Lúcio! Enganou-nos, deve ir também no carro, filho da puta! Vamos embora, atrás deles, o chefe já os tem na mira, ‘bora!». Ao comando imperioso do «tubarão», desembestaram os dois, porta fora, a correr, cheios de pica, todos energéticos, todos Vanessa Fernandes. Deixei-me estar, ainda mal refeito, mas com o coração aos saltos. Ergui-me (merda, não fazia outra coisa que não deitar-me e erguer-me e beber e fumar), abeirei-me da porta e topei-os, dois vultos na escuridão, correndo, à Carlos Rosa Lopes Mota, a entrar numa viatura de alta cilindrada, estacionada mesmo ao lado do R7.

O carro deles arrancou, guinando, voando sobre os buracos do caminho da quinta do Hel, afastando-se numa nuvem de pó, visível até naquela noite escura com breu. Sem pensar, também eu corria, tropeçava no carreiro e não parava, entrava no R7, sacava a chave do bolso, dava à ignição e por meu turno fazia a caixa e o acelerador chiarem assustadoramente, na peugada deles. Raios, onde iriam com tanta pressa?, ponderei, mal me vi ao volante. Que história era aquela de eu ser um filho da puta? Os porcos não conheciam a minha mãe, não sabiam nada de nada, quem eram os gajos? E onde iam tão depressa? Encurvei as sobrancelhas, enruguei a testa, tentando compreender o que fazia e para onde conduzia. O R7, calmo, mastodôntico, parecia apontar-me o caminho.

Mesmo assim, tornava-se difícil de manter a perseguição, iam muito velozes, os meninos, muito apressadinhos. Levavam-me, no mínimo, uns 500 metros de avanço, só que eu queria explicações e, inflamado por tudo o que se passara, puxei pelo R7, puxei-o até ao limite: 2300 centímetros cúbicos, 117 cavalos, 1500 quilos, 7500 rotações aos 160, com ou sem pneus carecas, com ou sem tubo de escape roto, sabia muito bem como lidar com o R7, não era um principiante a conduzir mamutes, aqueles porcos pagá-las-iam, pagá-las-iam e a minha intenção não era menos ferina; pagá-las-iam, sobretudo o tal do minorca, o tal do minorca, que eu não conhecia, mas que se rira quando o outro chamara de «puta» à minha mãe.

Ninguém tinha esse direito, só eu e, talvez, o meu pai. Pensamentos desconexos furavam-me o crânio, abrindo ladeiras pela minha mente fora, mais tendenciosas do que se fossem bagaço ou Chivas à mistura com “Duas Quintas”; unindo-se a sonhos de cabelos de fogo e pele de seda. Seda a arder. Cabelos de fogo. Cútis de seda em chamas. Cabelos em labaredas, estradas a arder, Chivas, Duas Quintas e Rioja, hehehe…

Preguei a fundo, perscrutando a névoa, verificando que afinal não se haviam distanciado por aí além. Lá me fui descontraindo, levantando, de tempos a tempos, o sapato do acelerador, só para que não dessem fé de que tinha companhia, afinal, ponderei, merecia a pena ser cauteloso e o R7, simpático, também se prestava a esse papel.

Rolámos, eles à frente, eu refundido, durante uns dez minutos, eles quase fora do meu campo de visão, loucos de todo, era só potência naquele Wolkswagen Miura; mas não era páreo para o R7 do Hel, que belo automóvel. Calmamente, fui controlando a velocidade, mantendo uma distância segura. Passámos por duas rotundas, virámos, sempre à esquerda, e dei por mim a 80 quilómetros horários, numa estrada secundária, em direcção à praia do Abano, sempre atrás dos bacanos, longe, mas seguro do que fazia.

Conhecia bem a praia do Abano; estivera lá com o Hel, no Verão, mais a minha miúda da época e um amiga dele, bem boa, por sinal, que seria feito da Sofia? Subimos, eles a puxar e eu na minha, demasiados buracos e falésias a rondar. Fosse como fosse, a recta logo após era longa e, se bem que um pouco perigosa, de certo modo convidava a reflectir. Lá iam os tipos, agora mais devagar, havia outros automóveis à frente deles. Meti o ponto morto e deixei-me deslizar, não me escapariam, isso, era certo, patente qb para qualquwer otário que aquela hora se lembrasse de se sentar na borda da estrada a observar, e alguém iria pagar, o sacana do «tubarão» ou o minorca, pouco se me dava, alguém iria pagar, não tinha qualquer dúvidas disso mesmo.

Com sorte, ainda apanhava o Hel pelo caminho, afinal, estava no seu território. Também, se apanhasse por tabela, era bem feito: quem o mandara roubar-me o R6?
Ao canto esquerdo da minha visão periférica, lá no topo, o Palácio da Pena proporcionava-me coordenadas conflituantes, onde terminaria o «passeio»? Abri a janela, escarrei, cheirei o ar e senti o aroma da maresia; era curioso como o regresso duma esmagadora bebedeira me aguçava temporariamente os sentidos. Todo eu estava alerta, estava uno com o R7 do Hel, que carro maravilhoso, e pisei ainda mais no acelerador, fazendo saltar o ponteiro para os 90, sem saber muito bem ao que ia, mas sabendo, ferpeitamente, que ia, oh se ia.

No final da recta, no último segundo, travei com a caixa e a desacelerar meti por um caminho de terra batida; foi aí que me senti verdadeiramente feliz: o R7 não me deixara ficar mal, chamem-lhe instinto, mesmo a tempo de não dar de frente com o carro na traseira deles, delicioso às minhas mãos e pés, O R7 havia-se desviado, galgado a estrada, subido um caminho de terra batida e, silencioso pela primeira vez desde que o conduzia, imobilizara-se, num descampado ladeado por pinheiros, de luzes apagadas, sem chiar.

Olhei, para os outros. Também tinham parado atrás da fila indiana. Curioso. Sai do carro, tranquei-o e fui-me aproximando. Lá à frente, imobilizado, em frente a uma árvore, estava o meu carro, o meu carro!, o R6, amolgado na porta de trás, luzes de caras na árvore em que não batera por milagre; estacionados na berma da curva da estrada, outros dois automóveis, haviam desligado as luzes e vi uma série de pessoas saírem das viaturas. Entretanto, rastejando, fui-me aproximando, fazia uma escuridão tramada mas eu quase que parecia ter olhos de infra-vermelhos. Topei os meus «amigos», que tinham parado o seu Miura na linha das outras duas viaturas e que riam, sardonicamente. Por um buraco entre as nuvens, vi a cara do minorca; estampada, carregando consigo um sorriso cruel.

De súbito, julguei reconhecer o Hel e a ruiva. Esfreguei os olhos, não era possível! Ouvi vozes, outra vez o som metálico, deste feita cruel, da voz do «tubarão». Hmmm. No ar, a maresia cheirava de modo estranho, não combinava com o resto, não combinava com nada; cheirava, cheirava a mentol.

Ariel - Capítulo I

Tinha bebido imenso, bagaço, vinho tinto, aguardente velha, eu sei lá! Sentia-me perdido, sim, um tanto ou quanto fora de mim, confesso; con...