19/03/09

Capítulo XIV

Deitado numa poça de lama, fechei e abri os olhos a confirmar se não fora vítima de um pós-choque alcoólico e se não estaria a sonhar vestido e de sapatos calçados, na cama, coisa que se tinha vindo a tornar mais frequente nos últimos tempos, mas não, parecia mesmo que aqueles dois, cercados pelos outros, eram o Hel e a Ariel.

Não podia ter a certeza, mas algo nos gestos deles me fazia intuir isso mesmo. Estavam rodeados por uma série de pessoas, e não parecia que a coisa estivesse a correr de feição; não, não parecia que se tratasse dum encontro casual de velhos e bons amigos, pelo contrário, apesar do orvalho da noite não permitir ver muito, quase que sentia a tensão distender-se do Hel e da Ariel, passando pelos outros, aterrando direitinha na minha poça de lama, em particular.

Arrastando-me, de coração aos pulos, fui-me aproximando, tentando não fazer ruído algum, sustendo, até, a respiração. De súbito, uma voz que reconhecia, de bares inusitados e não só, silvou no ar, metálica, maldosa, mesquinha: «Chefe, podemos só dar-lhe uns tabefes, para o aclimatar à nossa presença?»

Quem assim escarrava era o tipo que eu conhecia por «tubarão» e o homem que ele pretendia «aclimatar» não era outro que não o meu bom amigo Hel, que previa já completamente fodido. Cerrei os dentes na boca e as unhas dos dedos nas palmas das mãos; se eles não fossem tantos, se eu não tivesse deixado a Glock na bagageira do R6, logo aquele bastardo filho dum grande comboio de megalodons veria o que era bom para o «clima», ó se veria, o grande pulha: extingui-lo-ia para junto dos seus irmãos mandibulares em menos dum fósforo, ou melhor, em menos tempo do que leva um asteróide a embater na terra. Ao lado do «tubarão», o baixote, o «minorca», também o reconhecia, só pela sombra, avançava, reptilário, untuoso, ameaçadoramente. O Hel recuava, protegendo com o corpo a Ariel, mas era por demais evidente que a partida estava perdida, não tinham para onde fugir; mais atrás, o homem a quem o «tubarão» se dirigira abraçava uma mulher, só podia ser uma mulher e, quando a Lua, momentaneamente descoberta, iluminou a cena, topei que conhecia a gaja: era a puta da Telma, a vaca-loira do 23 que nos seguira e que poucas horas antes me declarara, chorando, um amor eterno, absoluto! Puta de merda, estava feita com aqueles suínos, só podia, a grande meretriz.

Abafei um grito e aproximei-me, colado ao solo, mantendo uma certa calma, era necessário. O gajo que parecia dirigir as operações – por um instante – fez-se de alarmado, mas lá descontraiu, cuspiu e sacou um cigarro do bolso. Usava um chapéu, um panamá, o traste, um panamá, de noite. Deixei-me ficar, todo mansinho, todo gato pardo, observando e sustendo a respiração.

Então, o homem que abraçava Telma acendeu o cigarro lá se descoseu para o «tubarão», indulgente: «Hmm, bom, vá, está bem, agora que o vento corre de feição e que tudo se vai resolver, pode ser, divirtam-se… Mas» - cuspiu, feroz - «Não se deixem levar, quero-o vivo e em condições de falar! Isto vale sobretudo para ti, ouviste, Tubarão?» O «megalodon» ouvira, por certo que ouvira, em dois passos estava junto do Hel e esbofeteava o meu amigo, uma, duas vezes, gargantuesco, com as costas da mão. Ariel gritou, mas de nada valia, já o «minorca» se ocupava dela, puxando-a para trás, para o chefe, aproveitando para lhe meter uma mão debaixo da saia.

Tudo aquilo me enraivecia só que não podia fazer nada, a minha impotência resvalava-me pela cara, um misto de lama e de lágrimas, não podia fazer nada! Ariel foi empurrada para dentro do R6 pela Telma, que gargalhava, acintosamente. O homem das ordens, que também ele me parecia estranhamente familiar, bracejou para o minorca que se colocasse ao volante do meu carro. Só de pensar naquele patife gorduroso ao volante do R6 ferveu-se-me o sangue e quase que deitava tudo a perder. Contive-me à justa, a realidade abatera-se sob a forma do upper-cut, com que, entretanto, o «tubarão», impecável no gancho, fizera o Hel voar, em slow motion: quando a cabeça dele bateu no chão gelei que nem o planeta Kripton e, sem saber bem porquê, empurrei-me ainda mais na lama, de cabeça, pensado que o Hel não iria ter um despertar agradável e que eu, quase de certeza, se fizesse um gesto que fosse, não teria melhor sorte.

Por fim, empapado, ressacado, porco, ergui o rosto, pus-me à espreita: o «tubarão» pegara no Hel como se manejasse um saco de batatas e fora depositá-lo no banco de trás do carro branco. Olhou para o outro tipo, o alto, o esbelto, o do panamá, o chefe, interrogativamente: «E?..», questionou. Os seus dentes patibulares brilhavam ao luar e os seus olhos então nem saber. O outro meco, indubitavelmente quem mandava, replicou-lhe, numa cadência expositivo-imperativa, de modo a que não restassem dúvidas a nenhuns dos presentes: «Toda a gente atrás do Alfa!, «tubarão», tu, no Miura, pode aparecer alguém, vamos, já perdemos demasiado tempo!..»

Eles despachavam-se, conhecedores das ordens, agora muito mais rapidamente, estava na hora de me pôr também a mexer. Pelo canto do olho observei a cena, o «tubarão» a escapulir-se para o Miura Branco; mais à frente, o que dava as ordens, abrindo a porta do Alfa; o «minorca», a Telma e Ariel no meu R6, que haviam sacado do baldio para onde o Hel o tinha afocinhado, o pobre do animal.

Ligaram os motores e pareciam intentos em fazer inversão de marcha. Era tempo, tinha de me despachar. Furtivamente, como um caranguejo, ou como um dos crustáceos aparentados que caminham de revés, rasteiro, fui-me afastando, regredindo silenciosamente para o R7.

Era tempo, sem dúvida que o era, vi-me livre do grosso da lama, abri a porta do carro, sentei-me ao volante, dei à chave, com medo de que não pegasse, e já eles, na estrada, passavam por mim, imoderadamente velozes. Pigarreei, lá encontrei a ignição, dei à chave uma terceira vez, pegou, mirei o espelho retrovisor, fiz o jogo de caixa - marcha atrás -, recuei, rodei o volante, liguei os mínimos, embraiei a primeira e arranquei, a alta rotação.

Levam-me uns duzentos metros de avanço, a sorte é que não iam muito depressa, pelo que, sacudindo lama dos cabelos, deixei-me ir, igualmente, só com os mínimos ligados, procurando não dar nas vistas. Em que história me viera embrulhar! Que raio se poderia estar a passar? Bom deus, não percebera nada daquilo. Que diabo fariam os melros e a prostituta do 23 neste folhetim sem pés nem cabeça? E o outro tipo, o das ordens, conhecia o gajo de algum lado, só não sabia era de onde. Em que merda me viera enfiar desta vez? Enfim, retrocedíamos, passávamos outra vez pela praia do Abano e metíamos de novo para Birre. Iriam os gajos para casa do Hel? Caralho! Que merda ter deixado o telefone e a Glock na bagageira do R6! Tudo seria mais fácil se tivesse o telefone à mão de semear, já não falando da arma.

Passámos pela casa do Hel e não pararam, seguiram para a rotunda de Birre e meteram pelo IC 15, que dava para a A5. Fixe, ponderei, iam para Lisboa, só podia ser isso, na volta iam de regresso ao 23 e, se assim fosse, de lá poderia facilmente encontrar um telefone e denunciar o caso, ou bem que ao meu velhote, ou bem que à polícia ou ainda a um dos meus “contactos” musculados.

Porreiro, era só manter a calma e segui-los, tranquilamente. Aumentaram a velocidade, 110, 120, 130, 140. Uma luzinha laranja acendeu-se no painel de instrumentos do R7. Aquela luz conhecia-a bem d e outros chaços, era a luz da Gasolina, estava na reserva.

Aproveitei uma descida para ganhar balanço e desengatar e a luz apagou-se; não havia problemas, mal entrara na reserva do R7, reflecti, tinha no mínimo para 80 quilómetros, apenas era necessário acalmar-me. Firme, de olhos fixos na traseira do R6, procurei o botão e liguei o rádio. Uma explosão de som invadiu a carlinga da viatura: «Get it on, bang a gong! Get it on, bang a gong!», T-Rex, a uma hora daquelas, no rádio? Revigorado pela magia dum som absolutamente inesperado às quatro da manhã preguei a fundo atrás deles, fazendo saltar o ponteiro da velocidade, também eu, para os cento e quarenta, cento e cinquenta, não me escapariam, de certeza que não, era só uma questão de me ver com a Glock nas unhas e logo teríamos pano para mais do que uma amena cavaqueira, ó se teríamos.

Então, na saída de Alcabideche, reduziram a marcha e ligaram os respectivos piscas, abandonando a auto-estrada. Eu, como não tinha piscas, limitei-me a reduzir ainda mais e, sempre de mínimos, mantive-me na cola deles. Lá iam, lá iam, mais devagar agora, eu sempre a olhar para o mostrador da gasosa, eles lá à frente, a uns sessenta, setenta, no máximo.

Entráramos na Nacional 9 e um pesado impedia-os de irem mais depressa, pelo que aproveitei para meter a quinta e levantar o pé. Aquela estrada conhecia-a bem, de outros «passeios», era sinuosa, tinha uma série de curvas complicadas de negociar, e reduzi, de novo, tentando manter pelo menos uns 100 metros entre mim e a traseira do R6.

Passámos pelo Hospital do Alcoitão, que desde o séc. XVI tinha como principais objectivos a reabilitação de «diminuídos físicos com incapacidade motora»; ao fundo da recta que bordejava o referido todos os três carros à minha frente se lançaram, numa ultrapassagem doida do camião que os procedia. Engatei a terceira e carreguei outra vez a fundo, sempre atrás deles. A continuarmos assim, com manobras disparatadas destas, em caso de acidente, pelo menos tínhamos a vantagem de estarmos perto do Alcoitão; era para ali que iam muitos gajos vítimas de acidentes rodoviários. Sim, muitos tipos acabavam a «reabilitar» as pernas, os braços e outras partes vitais no Alcoitão, embora, na maior parte das vezes sem grande sucesso.

Tive de engatar a segunda para completar a ultrapassagem, um bacano que vinha em sentido contrário deu-me máximos e travou a fundo, chiando, mas lá logrei meter para a faixa da direita, in extremis. Os outros já se distanciavam, galgando a recta, muito depressa, até parecia que levavam fogo no rabo, ou isso ou alguém estava cheio de tesão, só podia, casquinei para comigo próprio.

Meti a quarta, liguei os médios. O assunto estava a tornar-se perigoso, já levávamos uns bons vinte quilómetros desde que a luz da reserva se fizera notar pela primeira vez, para onde iriam eles? Para Lisboa não era de certeza, reflecti amargamente, essa opção estava fora do baralho, seria para Sintra? A 120 passei a abrir pelo autódromo Fernanda Pires da Silva.

No rádio, Bowie e «Gasoline» haviam substituído T Rex e «Get it on»; consciente da ironia da situação e vendo que os outros não davam mostras de abrandar, calquei o acelerador, fazendo disparar o carburador duplo do R7. Não, assim não iria longe, mas que se fodesse. Enquanto houvesse gota, segui-los-ia, em ficando apeado, confiaria na sorte, faria o melhor que pudesse, improvisaria, convinha que se fosse «pragmático», como diria o ministro dos Internos.

Essa lembrança fez-me doer a cabeça e não voltei a pensar no assunto, sabia que, no mínimo, o R7 tinha combustível que dava e sobrava para chegar a Sintra, talvez até desse para chegar mais longe e, se não fosse esse o caso, logo se veria. Não me apetecia tomar decisões extemporâneas, ao diabo ao Ministério, estava mergulhado num caldo quente demais para pensar em trabalho. E nos documentos, já agora, que viajavam lá à frente.

Desliguei o rádio. Sentira-me tonto e conduzira demasiado depressa. No silêncio da noite, desengatei e deixei-me rolar, felizmente, não me aproximara em demasia da traseira do R6. Eles não me haviam topado, estava confiante disso, e lá fomos, em velocidade de cruzeiro, dando-lhes os costumeiros 100 metros de avanço, para alguma coisa havia de servir o curso de condução defensiva que a DGV me havia patrocinado.

«Get it on, bang a gong», trauteei, sorrindo, relembrando de quando ouvira aquela música pela primeira vez. Fora quando levara a Angélica, a minha namorada «oficial» ao cinema, tínhamos ido ver «Jar Head», um filme sobre magalas americanos e sobre o atoleiro que sempre são as guerras, fora nesse cinema e no decorrer desse filme que a beijara pela primeira vez.

Era tão boa a Angélica, de facto boa, em vários sentidos, muito melhor do que todas aquelas putas a quem actualmente me batia, reflecti a contragosto, antes de abrir o vidro da janela e de escarrar, tentando de algum modo consolar-me do facto de ela me ter posto os cornos e de - por cima - me ter enviado um vídeo porn amador em que era fodida à canzana pelo tipo com quem me colocara os palitos. Sim, a Angélica sempre tivera um sentido de humor muito peculiar mas, para o caso, isso não interessava nada; talvez que, se conseguisse safar-me desta situação imbecil em que me vira envolvido - se - e era um enorme se, talvez que lhe telefonasse, talvez que fizesse as pazes com ela, assinasse um armistício final, a beijasse, a sentisse nos meus braços, os nossos cheiros misturados, corpo a corpo, afago a afago e, finalmente…

«Bobagem», vociferei em voz alta, regressando àquilo que realmente importava: a carlinga do R7, a manete das mudanças, o indicador da gasolina, os pedais, um de cada vez, mais a embraiagem; a porra dos documentos, o telemóvel e a Glock, no R6, que seguia, ligeiro, com uma ruiva assustada, por certo, no banco de trás, à minha frente. Num carro que, por estúpido que pudesse parecer a posteriori, era um automóvel que me pertencia.

«Bobagem», murmurei, pouco ou nada convencido do que repetia a mim próprio; enquanto tratava dos meus assuntos egoístas, particulares, Ariel e o Hel podiam estar, se não o estavam mesmo, em risco de vida. Acalmei-me, tentei concentrar-me na condução, tentei concentrar-me nela, no desdém com que me tratara. Que gata, que gata.

A viagem prosseguia, agora mais devagar, se fosse de dia, quase que teria curtido de largo a paisagem, a bem dizer, estava habituado a isso. Como era de noite, tinha de concentrar-me e deixar-me de brasileirismos. «Bobagem», casquinei entre dentes e voltei a escarrar para noite.

Ao fundo duma recta, do lado direito, entrevi um muro alto, sinistro, encimado por rolos de arame farpado . Que sítio. A abrir, passei por uma placa garrafal onde se podia ler, só para o caso de engano, «Estabelecimento Prisional do Linhó». Sacudiram-se-me todos os nervos e afastaram-se de mim quaisquer vestígios da garrafa de Marques de Rioja com a qual me banhara em casa do Hel.

Involuntariamente, firmei-me no volante e vi ao longo daquele muro, que nunca mais acabava, a vida correr sobre mim num flash-back de arame farpado após arame farpado. Quais fios de arame com que se prendia a minha, aqueles outros, os do Linhó, carcereiros de tantas outras existências, pareciam sorrir-me, cinicamente.


Conhecia um gajo que estivera recluso ali. Aquela prisão não era das boas. Ultimamente, no Ministério, corria à boca fechada que dois «suicídios», noticiados nos jornais, afinal, não passavam de dois «homicídios», mais ou menos tenebrosos, mais ou menos asquerosos. «Bobagem», pensei.

O Olívio, o gajo que eu conhecia e que estivera «dentro» no Linhó, seguramente, teria uma palavra ou duas a dizer sobre o assunto. Sorri. O Olívio era um tipo muito interessante. Cigano, amigo do meu velhote, sob cujo comando fizera a guerra em África. Sim, o José Francisco Olívio, esse sim era um gajo que me daria muito jeito num aperto destes. Na volta, assim que estivesse perto dum telefone, seria a ele a quem ligaria primeiro; o Olívio era gajo para me tirar daquela situação e até homem para me agradecer a «oportunidade» de limpar o sebo ao «megalodon» do 23. Sim, era caso para tanto, estava ao corrente de que, quer o Olívio, quer o «tubarão», não só não eram flores que se cheirassem como não morriam de amores um pelo outro, literalmente.

Bem, reflecti, logo se veria, a procissão de viaturas à minha frente parecia de facto dirigir-se para Sintra, era caso para relaxar e ligar de novo os mínimos, não fosse dar-se a asneira de estarem alerta. A luz laranja no painel de instrumentos agora fazia-se permanente, o carburador duplo do R7, provavelmente, estaria na origem desse facto.

Seria bom que chegássemos ao destino, tão breve quanto fosse possível, ao covil dos que me haviam roubado o carro e o amigo, de preferência, perto duma cabine telefónica. Só por causa das moscas e do Linhó. E da gaja, daquela mulher esbelta e ruiva que nos havia driblado; queria comê-la, queria resolver o caso todo, fazer dela minha mulher e queria, claro, que ela fizesse de mim seu homem.

18/03/09

Ariel - Capítulo XV

As pálpebras subiam com invulgar lentidão, como se estivessem perras, à medida que as gotas caíam uma à uma em cima da minha testa e escorriam pelo rosto, como finas agulhas frias que se espetavam na carne. Arrastei um braço e toquei na cara. Argh! Impelido pela dor, tirei a mão com um ímpeto repentino quando senti o inchaço. Desta vez, com mais cuidado, só com as pontas dos dedos, tacteei a cara que havia perdido os traços habituais, para se revelar, agora, uma massa disforme. O sobrolho inchado e macerado dificultava-me a visão; descendo pela linha do rosto, reprimi um gemido quando toquei no lábio aberto. Tentei recapitular a noite anterior, mas a minha mente recuava, horrorizada, fechando-me as portas e escondendo-se de mim, implorando que a deixasse em paz. Obriguei-me a romper a névoa dos meus pensamentos e recordações desordenados, desconexos e estilhaçados, fazendo um esforço para me lembrar. A cabeça atingia picos de dor lancinantes para logo cair numa estranha dormência tranquilizadora. «Hm...» … … Eu estou bem, Hel… estou bem. Sim… o Lúcio na minha cama, moribundo, abatido pelos excessos da noite. E se fôssemos no R6… Hel? A ruiva, acariciando-me a mão com os dedos longos, destilando o seu veneno melífluo, com promessas na voz ao pronunciar o meu nome, seduzindo-me, a cabra, aliciando-me a levar o R6 no nosso passeio nocturno. Subitamente, o ódio momentâneo que nutrira por ela naquele ponto da noite avolumou-se numa vaga que varreu a minha débil tentativa de raciocinar. Só que a culpa era minha, só minha, por me ter deixado levar por ela, por aqueles cabelos vermelhos e perfume doce, por aqueles olhos verdes e toque quente. Espera…! O R6, a estrada, as ondas a bater com violência nas rochas, aquele cheiro estranho a… a mentol, era isso!, Não te vamos matar, não te preocupes… não agora, não aqui, hahaha! Temos apenas alguns assuntos pendentes a resolver com a tua amiga, é tudo, a voz fria e trocista a ressoar contra as paredes do meu crânio, cortando a noite, ordenando que enfiassem Ariel no carro e que me tratassem da saúde. Quando acabei de montar o puzzle, o cérebro accionou-se num estalido e, como um projector, começou a passar o filme da noite anterior, a perseguição e o momento em que me despistei, por pouco obliterando-me contra a árvore. «Hm…», lembrei-me dos punhos a voar pelo tecido negro da noite e a esmagarem-se contra o meu rosto em baques horripilantes. Lembrei-me dos joelhos a colidirem com as minhas costelas e, por fim, aquele gancho do tal «Tubarão» que me fez ver tudo branco. Que esquerda terrível; se havia forma de saber o que se sente depois de um tanque nos passar a ferro, era aquilo: um uppercut dado por um tubarão. Embora não visse, escutara ainda o burburinho de vozes que não faziam sentido, havia dado conta quando me lançaram, como morto, no banco do carro, ouvira o bater de portas e, depois… o vazio negro da inconsciência.

Fiquei imóvel com os olhos fixos no tecto, sem a mínima vontade de mexer um tendão que fosse. A goteira não cessava e, embora desagradável ao início, era revigorante sentir a água fria lavar-me as feridas da cara e escorrer até desembocar nos lábios secos e gretados, pelos quais passei a língua, com cuidado para não tocar na ferida. Bebi algumas gotículas com sofreguidão, saboreando cada uma como se estivesse perdido no deserto há dias. Deixei-me estar, com o corpo dormente e rígido, sem saber se me doía ou o que me doía. Ainda esgotado pelos acontecimentos recentes, soltei um grunhido e comecei a semicerrar os olhos, devagar, só desejando enclausurar-me nos meus sonhos e esquecer tudo, mas abri-os com violência, contrariando os caprichos da mente, que teimava em querer apagar as luzes e ir dormir. Não, não podia fazer isso, tinha de saber onde estava, tinha de fazer alguma coisa, qualquer coisa, o que fosse. Por cima de mim, o tecto de madeira podre, carcomido pela humidade e pelas térmitas, dava licença à chuva, por entre as frestas, para se infiltrar. Já farto do banho, comecei a erguer-me, massajei as têmporas e gemi, sem saber se gemia da sova, se da ressaca, com os músculos atrofiados e os ossos a ranger e a estalar nas articulações. «Já acordaste!» Sentado em cima de um colchão velho e bafiento, com as molas a despontar pelo tecido roto, arrastei o pescoço em direcção à voz familiar. Tentei focar, mas só via uma figura alta e magra. Parecia uma mulher. «A…Ariel…?», indaguei, confuso, tentando filtrar o nevoeiro e regular a imagem que os olhos me transmitiam. A forma segurava uma cortina e espreitava por uma janela para o exterior. Escutei passos preocupados e assustados avançarem na minha direcção. Gradualmente, a imagem tornou-se mais nítida. Via-a, agora, ajoelhada à beira do colchão. «Hel? Estás bem?» Segurou-me a mão e passou a outra pela minha cara. Gritei quando todos os sensores de dor se activaram, dei um salto, como se o corpo tivesse sido electrocutado, e senti que todos os motores tinham voltado a ficar operacionais, como se só precisassem de alguém para ligar o interruptor. De repente, as pálpebras escancararam-se, a imagem ficou bem mais definida do que HD e os músculos foram infundidos com energia. Ela retirou a mão, sem esconder o sobressalto e a apreensão. «Estou, estou bem, mas não me toques, não na cara, parece que vai explodir de tão inchada… nem nas costelas, nas costelas também não, ai…», soltei uma pequena gargalhada que me fez entrar num ataque de tosse; o diafragma subia e descia, a caixa torácica contraía-se em impulsos rápidos e violentos; não era uma experiência que gostasse de repetir. Ela mexia as mãos em gestos desajeitados e hesitantes, como que me querendo ajudar, mas sem saber bem onde me tocar. Fiz-lhe sinal com a mão de que já estava a passar e observei-a em silêncio. Não era a mesma mulher da noite passada, segura, fria, confiante. Os olhos raiados de sangue revelaram-me que tinha estado a chorar. Segurava os braços com as mãos e estava pálida, desgrenhada; a maquilhagem escorrera-lhe pelas faces em lágrimas negras. Tinha uns arranhões na cara e os braços sarapintados por nódoas negras, mas, fora isso, parecia estar bem, pelo menos o corpo, que tremia de frio e talvez até de medo. Como se não desejasse enfrentar-me, fechou os olhos. Dei-lhe um momento e absorvi o ambiente em meu redor.


Não havia muito para ver. O quarto não passava de um quadrado minúsculo com paredes despidas e alguns objectos volumosos, que supus tratar-se de móveis, cobertos por lençóis rotos e amarelados. Como o tecto, também as paredes eram feitas de madeira apodrecida. Inspirei longamente e o fedor pesado do mofo e da humidade obrigou-me a reprimir os pulmões que se preparavam para iniciar um novo acesso de tosse. À direita do colchão, havia uma pequena janela rectangular. Desentorpeci as pernas e, apoiando-me no ombro dela, ergui o corpo, esticando a coluna, com resmungos de dor. Avancei uns passos cambaleantes até à janela e afastei a cortina velha e poeirenta. Nada. O sol estava prestes a romper, mas ainda era impossível distinguir cores, objectos, fosse o que fosse. Apenas conseguia perceber que estava num sítio elevado, talvez um segundo andar, e que o edifício devia estar embrenhado no mato, isolado, uma vez que as copas altas das árvores recortavam o céu e o horizonte. O vento corria num assobio furioso, fustigado pela chuva intensa de Dezembro, esmagando-se contra a janela como um aríete. Onde estamos? No momento em que pensei, a minha boca proferiu a questão em movimentos automáticos. Ela não respondeu. «Onde estamos?», atropelei-a com um esgar furioso, desejando poder culpá-la de tudo, atirar tudo para os ombros dela, num acesso de egoísmo, «maldita a hora em que te conheci!» Ela levantou-se, conformada com a situação, encaixando os golpes, fazendo um esforço perceptível para recuperar o sangue frio. «Vais dizer-me ond…!?» «Não sei!», explodiu e, inspirando fundo, mais calma, «não sei, está bem?... Não sei». Um sentimento de pena substituiu a raiva que sentia dela. No meio daquela enrascada, parecia tão perdida quanto eu. Contudo, a minha vontade continuava férrea em descobrir em que berbicacho me tinha metido. Calmo e controlado, coloquei um freio na voz, e perguntei-lhe quem eram aquelas bestas e o que queriam. «Não posso, desculpa, não me perguntes, não posso…», começou, fugindo à pergunta. Trilhei a distância que nos separava em duas passadas largas e apertei-lhe os braços. «Diz-me o que se passa! Quem são estes tipos? Quem és tu?» Cingi o aperto e agitei-a. Ela reprimia os gritos, «estás a magoar-me!», implorava que a libertasse. Aterrorizado pela minha atitude e com medo de fazer algo de que me pudesse ainda vir a arrepender, lancei-a para cima do colchão, recuei, ofegante, com o coração descompassado, e encostei-me à parede, deixando-me escorregar até cair sentado. Pus os braços sobre os joelhos e apoiei a testa.


Senti o corpo dela sentar-se ao meu lado. Pousou uma mão periclitante e trémula no meu ombro. Ergui o rosto. Ela tentava tranquilizar-me com um sorriso, mas os olhos não sorriam. Estavam vítreos das lágrimas negras. «Escuta, Hel», o silêncio prolongou-se, «eu sei quem nos trouxe para aqui». Observei-a em silêncio, dando-lhe permissão para continuar. «Sei do que estão atrás. Tu…», suprimiu um soluço, «Tu nem devias estar aqui, nada disto devia ter acontecido assim, correu tudo mal! Tudo mal!», encetara um monólogo delirante, reprovando-se pela situação em que nos encontrávamos. Dei-lhe tempo de se recompor. «Eu sei que tens muitas perguntas que queres ver respondidas, mas não te posso contar nada. É para teu bem, acredita no que te digo», assegurou-me com convicção. «Quanto menos souberes, melhor estarás. …Mesmo que te pusesse a par de tudo… isso, isso não mudaria nada», calou-se, num sussurro de desalento. Percebi que não ia conseguir arrancar nada dela, não sem violência e disso já tinha para o bife. Além disso, arrancar informações de pessoas à pancada não fazia bem o meu género. «Está bem, Ariel, está bem, não te vou perguntar o que se passa», concedi, com compreensão resignada. «Neste momento, não me ajudaria em nada. Sei que estás metida numa embrulhada qualquer e que fui apanhado no meio desta salgalhada. Quem é ele?, um namorado ciumento?», perguntei, escarninho. Fitou-me sem emoção. «Basta que saibas que é um tipo da pesada, muito perigoso e influente. Não é o tipo de homem com quem te queiras cruzar», revelou-me, sombria na voz e ainda mais no olhar. «Ok, ok, aceito a tua resposta», assenti, tranquilizando-a que não insistiria. «Se bem que agora é tarde, já nos cruzámos», rematei, mais amargo do que um limão. «Mas, e agora?», levantei-me, puxando-a para cima. «Temos de pensar numa forma de sair daqui!», tentava despertá-la do torpor. «É preciso fugir, de alguma forma, fugir, chegar à polícia, pedir ajuda!» Porém, no íntimo, sabia que o que dizia não fazia sentido. Se fosse assim tão fácil, ó, se fosse, já ali não estaria. «Em breve será dia, darão pela nossa falta. O Lúcio, sim, o Lúcio fará alguma coisa, vai contactar a polícia e…» «Não percebes?», cortou-me a palavra com um silvo, «estamos aqui presos, sem hipótese de fuga, isolados de tudo». Mirava-a, atónito, enquanto ela esbracejava e desabafava entre soluços que não havia nada que o meu amigo pudesse fazer. A minha única esperança era o Lúcio, mas como poderia ele descobrir-me se nem eu sabia onde e com quem me encontrava? A possibilidade de ela ter razão começava a ganhar uma forma assustadoramente real. Lutei contra a impotência que começava a aflorar. «Não tens um telemóvel, algum meio de contactar quem nos possa ajudar…?» Meneou a cabeça com desalento, «Esquece… Daqui a pouco, virão aqui para nos arrancar informações. Seremos torturados só pela piada, mesmo que já saibam tudo». O meu corpo gelou até ao tutano dos ossos ao som da palavra «tortura». Sentindo o desespero a tomar o controlo, esbaforido, lancei uma mão trémula à janela, numa tentativa de encontrar um meio de a abrir, tacteando a tranca. Puxando e empurrando, forçava com todas as minhas forças, mas não se movia um milímetro que fosse. Ofegante, lancei os olhos alucinados para a porta. «Esquece, está trancada. Achas que não tentei?», estourou, em frustração desolada. Levou as mãos à cara, deixou o corpo encostar-se ao meu e correu a minha cintura com os braços, «desculpa… não devia ter acontecido assim, não devia…» e começou a soluçar. Cingi-a nos braços com um aperto forte e passei-lhe a mão pelo cabelo. Tinha passado a noite a tentar aproximar-me dela e, agora, ali estava ela, nos meus braços; contudo, aquelas não eram de todo as circunstâncias que eu teria escolhido. Deixei-a chorar em silêncio, sem proferir um som, sem a consolar ou dizer que tudo acabaria bem. Também me deixei perder nos braços dela, com a hipótese de um desfecho horripilante cada vez mais premente. E assim ficámos, não sei se um segundo, se uma hora, abraçados num silêncio lúgubre.


De súbito, a porta começou a estalar e a abrir com um lamento de dobradiças, deixando assomar um rosto inquisitivo que nos espiava. Ariel libertou-se dos meus braços com violência, surpreendida, e virou-se para a porta. Quando viu o nariz proeminente farejar o ar e a mão grande e poderosa como a de um gorila escancarar a porta, «Que comovente!, hahahaha!», deu dois passos amedrontados para trás, escondendo-se atrás de mim. Fiquei petrificado, colado ao chão, tinha reconhecido aquela voz grave e ribombante. Chefe, podemos só dar-lhe uns tabefes, para o aclimatar à nossa presença? Com que então, aquele é que era o Tubarão. À luz parca da lâmpada, dava para perceber como conseguira o epíteto. Além de ser maciço, com uns dois metros de altura e quase outros dois de ombros, o tipo encarava-nos com olhinhos de marfim pequenos e redondos fixos no centro das órbitas, quase cobertos pelas espessas sobrancelhas loiras, e com uma expressão de malevolência irónica a acompanhar. Logo abaixo, as narinas sorviam grandes golfadas de ar, tão grandes que temia que esgotassem o oxigénio da pequena divisão. A mandíbula portentosa abria-se e fechava-se numa gargalhada cavernosa, deixando antever, por entre os lábios finos, quase inexistentes, duas fileiras de presas reluzentes e pontiagudas, fileiras que já tinha visto antes, à saída do bar, quando o Lúcio me telefonara a dizer que estava à porta do governo civil com um doce. Tinham sido aqueles dentes massivos que me haviam sorrido quando, para picar o Lúcio, o acusara de me ter levado a mulher, sacana, fugiste com o meu amor, fugiste com o amor da minha vida! Na altura, tinha sido um sorriso cúmplice, mas, agora, os dentes pareciam prontos a despedaçar-me, a arrancar-me os membros um por um, à medida que o maxilar abria e fechava, abria e fechava, ao mesmo tempo que jurava ouvi-lo ranger nas articulações, como um mecanismo mal oleado. Desviei a atenção para a ruiva e os nossos olhos cruzaram-se. Ela sabia bem no que eu estava a pensar e o mamute, ou tubarão, também. Parou de gargalhar como um demente, sacou dos óculos escuros, que colocou sobre o nariz de papagaio, assumiu uma postura direita, como se ainda fosse o guardião impreterível do 23, e vestiu uma expressão de mármore, desempenhando o papel de segurança. «Sou eu, sou! Já vi que te lembras», declarou, cáustico. Tirou os óculos e voltou a guardá-los. «Ainda bem que já estão acordados, meninos. Infelizmente, não temos pequeno-almoço, mas, para passar o tempo, está na hora de ter uma conversa com o chefe», sorria com visível satisfação perante as nossas expressões de confusão e medo, que ele farejava com aquelas ventas salientes. Apelei a todas as minhas forças para fazer ar de mau e perguntei-lhe, de chofre, o que é que queriam de nós. Só consegui arrancar-lhe mais riso e troça. Era a primeira vez que via um tubarão a rir. «Oh, tu tens sangue nas guelras, hahaha!» Resmunguei para mim mesmo que «o único que pode ter guelras aqui és tu». Parou de rir e dardejou-me com olhos assassinos. Nervoso, mexi desajeitadamente o corpo, pronto para encaixar, na medida do possível, uma investida. Pelos vistos, também ouvia tão bem como um tubarão. «Ah, que posso fazer, o nome colou!», gracejou. «Tu! Vem comigo!», regougou, seco e ríspido, apontando um dedo poderoso na nossa direcção. Num conflito de emoções, os meus instintos mais básicos ordenavam-me que me escondesse, nem que fosse debaixo do soalho, dentro de um armário, mas, ao mesmo tempo, tentava proteger Ariel com o corpo dorido. Vislumbrei o punho pesado como uma marreta e recordei-me da noite anterior, do que acontecera quando tinha tentado protegê-la. Num segundo, aqueles punhos de aço tinham-me posto a comer terra e a ser levado para o meio do nada num carro recheado de criminosos. No entanto, era demasiado escrupuloso para a usar como escudo, demasiado para o meu bem. «Ohohoh, queres protegê-la, outra vez?», chutou a pergunta com um misto de desdém e satisfação. Abriu e fechou as manápulas, estalando todos os ossos da mão. Parecia ansioso por libertar tensões acumuladas e, pela veia que pulsava na testa, era mais do que óbvio que o tipo nunca devia relaxar. Deu um passo que fez estremecer o soalho, reverberando pelas paredes, mais outro e mais outro, até se acercar de mim. Levantou uma das bigornas que lhe encimavam o pulso. Ergui os braços desajeitados e aguardei o golpe. Começou a rir e bateu-me com camaradagem no ombro. Desequilibrei-me com a surpresa da atitude e com a força da sua demonstração de fraternidade. «Vem cá!», rodeou-me os ombros com o braço pesado como um tronco; verguei-me sob o peso como uma vara. «Sabes, admiro gajos como tu, palavra, autênticos cavalheiros, sempre prontos a apanhar no focinho por causa das gajas», começou, numa ironia paternalista. «Mas, sabes?, tu não és um cavaleiro e ela, como já deves ter percebido, não é nenhuma princesa; aliás, é bem mais do que parece». Olhou para trás na direcção dela. «Desta vez, não precisas de protegê-la», aproximou-se do meu rosto e senti o cheiro denso e pesado do tabaco de merda que fumava, «sabes porquê?», sorria, quase amistoso. Parecia esperar, sinceramente, uma resposta. Como não a obtivesse, pegou-me pelo colarinho com uma mão e, com um rugido, projectou-me em direcção à entrada. Atravessei o portal e despenhei-me com um eco estrondoso. «Porque tu é que vens comigo, hahahaha!» «Deixa-o, Tubarão!», Ariel interveio, medrosa, mas também ela a tentar dar ares de durona. «Ele não tem nada que vos possa ser útil!». «Psht! Calou!», desferiu-lhe uma chapada com as costas da mão, o que a lançou para o colchão. Em pânico, olhei para dentro do quarto, ainda prostrado. Um golpe daqueles até podia matá-la. Contudo, dando provas de resistência, Ariel mexeu a cabeça e ergueu-se nos cotovelos. Exibia um corte profundo na face, desferido pelo anel que o brutamontes exibia na mão direita. Virou-lhe as costas e veio direito a mim. «Tu é que vens comigo!» Segurou-me pelos ombros e levantou-me, com os membros bamboleando como se fosse um boneco de trapos, colocando-me sobre os pés. Com uma mão nas costas, «Vamos! O chefe quer conhecer-te», empurrou-me para longe da porta. «Mexe-te, à minha frente!», cambaleei, esfregando o ombro, não sem ainda me voltar apenas para vislumbrar a porta fechar-se num lamento e bater com estrondo. Pegou num molho de chaves, trancou a porta e colocou-as dentro do bolso, dando-lhes uma pancadinha. Ariel tinha ficado para trás e, quanto a mim… ia conhecer o chefe.

17/03/09

Capítulo XVI

Quase de imediato desatei à gargalhada, era necessário não perder o sentido de humor, sim era necessário: eu e a Ariel? A Ariel e eu? Ahahah! E que tal ser salvo da enrascada em que me encontrava pelo Pai Natal?.. Sempre seria mais credível e, afinal, até estávamos na época dele dar as caras por essas chaminés demasiado esbeltas fora, gargalhei, efusivamente. Por fim, lá me controlei, limpei a baba dos lábios e assumi de novo uma expressão séria. O caso não era para graças, reflecti, os meus «amigos» continuavam o seu percurso para parte incerta, estava convencido de que seria para Sintra, mas não podia ter a certeza e, mais a mais, cada quilómetro que percorríamos reduzia as minhas opções de forma dramática. Maldição.

O que precisava era dum copo, estava outra vez a doer-me a cabeça, uma moinha que conhecia doutras madrugadas igualmente exasperantes; o pior é que tinha para comigo que a tendência não seria a de melhorar, provavelmente não. Um charro, um charro, só por causa das moscas, já se fumaria, ajudaria, deixar-me-ia mais alerta. Recordei que tinha precisamente o que precisava no bolso da camisa, uma broca que tinha feito há uma data de tempo, enrolara-a com a intenção de a partilhar com o Hel só que, dado tudo o que se passara, esquecera-me por completo. Levei a mão ao bolso da camisa e encontrei o meu cilindro. Estava amarrotado mas, não molhado, fixe, tinha uma broca, era fumá-la e serenar.

Entretanto, os outros seguiam mais devagar, mais calmos, já era tempo, moderei também a velocidade, acendi a ganza, dei duas longas passas (bom stuff, muito bom stuff), e pus-me a pensar. Desde que saíra da quinta do Hel atrás do «tubarão» e do «fuinha», os acontecimentos haviam-se desenrolado de forma completamente imprevista. A história não fazia sentido e dei mais dois longos tragos no meu «impulsionador da razão». Tossiquei. Por certo, recapitulei, estava na presença duma quadrilha, duma associação criminosa e, pelo menos parte dela, se não toda, tinha por base o 23, em Lisboa. Curioso, muito curioso. Dei mais uma passa de encher a caixa torácica até à glote, apaguei o charro no cinzeiro do R7, aguentei uns 30 segundos e lá exalei, quente, recuperado, pronto para nova reflexão.

«Eles», a Telma, o Megalodon, o Fuinha, eram todos do 23, mas não era para lá que se dirigiam. Curioso. Engatei a quinta e lá me deixei ir, suavemente, pela recta fora. O primeiro problema era a Telma. Porque nos seguira? Queria qualquer coisa de nós e, quando a surpreendera, fizera-se de novas, puxando pela carta da paixão. Hm.

O segundo problema eram o Tubarão e o Fuinha. Aqueles dois cromos não se enquadravam no puzzle, parecia estranho terem aparecido, vindos nem se sabia bem de que 31, sem mais. Tinha de pensar nesses dois, sempre me haviam tratado respeitosamente - até então-, mesmo o Fuinha, com o qual não trocara mais do que uma ou duas palavras de circunstância; a bem dizer, não conhecia nem um nem o outro, excepto do 23, onde nem sequer ia todas as noites.

O terceiro problema era o homem, aquele que dera as ordens e que seguia no alfa spider preto que liderava a caravana. Diabos, esse gajo da boquilha e do panamá não me era estranho, sabia que o conhecia de algum lado mas, de onde?

Havia ainda mais um problema: a ruiva, a Ariel, como é que ela se encaixaria no puzzle? Hm. Vendo-os apressarem-se, pisei também no acelerador. Na volta, não se encaixava, tinha sido um mero acaso, não deveria ter nada a ver, ou bem que os tipos tinham assunto comigo, ou bem que tinham assunto com o meu bom Benjamin, o Hel, só podia ser isso, a Ariel estava a levar por tabela, saíra-lhe a fava do bolo-rei, enfim, acontece aos melhores, mesmo no Natal, ou na véspera, bocejei, anotando que faltavam três dias para passar a noite com o velhote, caindo-me a cinza do charuto entre as pernas, escapulindo-se por entre o tecido das calças, aterrando-me no colo; era óbvio que me encontrava comovido.

De súbito, umas palavras que o «tubarão» proferira quando ele e o «fuinha» revistavam a casa do Hel saltaram-me à cabeça, ensurdecedoras: «Esse cabrão do Lúcio! Enganou-nos, deve ir também no carro, filho da puta!»

Pois era, fora isso que dissera aquele escroque e isso só poderia significar que o rapto do Hel e da Ariel não era o objectivo primário daqueles tratantes: era de mim que estavam à procura, o dito carro que o «tubarão» mencionara era o meu carro, o R6 que seguia na estrada - lá à frente! Senti um calafrio percorrer-me o corpo todo, estremeci e involuntariamente pisei ainda mais o acelerador. Respirando fundo, levantei o pé. Tinha a boca seca. Eles andavam atrás de mim e eu, dava agora fezada da cena, andava estúpida e literalmente atrás deles; mais idiota do que isso, não, não podia ser!

Mas, se era de mim que queriam batatinhas, talvez fosse melhor esquecer a perseguição e, ao invés, contactar as autoridades, logo que me fosse possível. Sim, era isso mesmo, quem queriam era a minha pessoa, o Hel e a Ariel não lhes interessavam para nada, por certo, assim que vissem que eles nada sabiam, os deixariam partir…

Por outro lado, estava quase sem gasosa, arriscava-me a ficar apeado no meio de nenhures e a perder um tempo precioso; o mais acertado seria parar mal visse uma estação de serviço ou uma cabine telefónica e contactar as autoridades. Claro! Era a mim que eles queriam, não era nem ao Hel nem a à Ariel, soltá-los-iam assim vissem que eles não lhes podiam dar quaisquer informações sobre o meu paradeiro!

Ou não… Ou não, pois, cavalgaduras como o «tubarão» e o «fuinha», em rilhando os dentes numa vítima, não a desaferrolhavam por dá cá aquela forquilha, sem mais, prestimosos, atenciosos, «faça favor de desculpar, foi um engano, um engano inocente». Nã, não eram bichos para isso, mesmo que, ao avesso de caviar, as «vítimas» lhes soubessem a banha de porco sem glúten; não, não o fariam, pelo contrário, o mais certo seria irem um buscar um saleiro e a pimenta e cozinharem tudo em lume brando, sempre daria um gostinho de consolação à banha e, aqueles dois melros, se é que sabia alguma coisa sobre pássaros, eram criaturas de muito, muito mantimento.

Pois, pois era, isso era mau, assaz mesmo. Abri a janela, senti-me revigorado pelo ar fresco da noite e escarrei, para o asfalto, despejando nele uma boa parte do meu stone. Começara a chuviscar de novo e não era capaz de tomar uma decisão. Deveria parar assim que possível ou continuar a perseguição? Voltei a subir o vidro. Soltei uma imprecação – Raios -, se andavam atrás de mim, teriam de ter um motivo, esse é que era o problema real; porque belzebus andariam atrás de mim?

Quer dizer, sabia bem que era um tipo charmoso, quando queria, encantador, sem rival à altura; crescera fruto de famílias brasonadas com sobrenome, dinheiro (bastante até, dependia do que se entendesse por isso), terra, morgadios e tinha uma carreira promissora no Ministério dos Estrangeiros mas, daí a ser popular junto de figurões como aqueles… Nã, murmurei, ainda se fossem caçadoras de fortuna, putéfias, tipos à procura de cunhas, poderia bem ser; assim, como as coisas se apresentavam é que… Nã, exclamei em voz alta, desconfiado. Liguei o rádio. O locutor anunciava que eram cinco para as quatro e que se previa uma manhã de vento e de chuva; sentia-me exausto, desde as seis da tarde do dia anterior, quando saíra do Ministério, nada me correra bem, nada. O Ministério! Era isso, o caso estava ligado ao Ministério, tinha de estar e, se estava ligado ao Ministério, ponderei, sentindo as velhas engrenagens do cérebro rangerem cada mais depressa, só podia estar ligado aos documentos, aos documentos secretos que deixara na mala do R6, os quais nem sequer me dera ao trabalho de cuscar no dia anterior – sim -, só podia ser isso, andavam atrás dos documentos!

A minha decisão estava tomada: seguiria os escroques que haviam raptado o Hel e de brinde me haviam azougado o R6 e os documentos. A ironia da situação fez-me sorrir, eles tinham, ali, mesmo à mão de semear, o milho que os havia feito adejar sobre nós, como abutres; só que não o tinham topado e agora lá iam, comigo na sua cola. Havia esperança, a madrugada ainda era uma criança, quem sabe, talvez até pudesse reverter o curso normal dos acontecimentos em meu benefício: «Lúcio Ferro, quadro dos Estrangeiros, soluciona conspiração internacional»; «Lúcio Ferro recebe do PR Ordem da Liberdade», na minha euforia já via páginas e páginas de jornais enaltecendo os meus feitos futuros, o meu pai sorrindo, de braço dado no palanque com o eterno candidato, finalmente orgulhoso do seu filho!

Depressa tropecei na realidade, os «outros», após uma curva apertada, viraram à esquerda e meteram para Sintra. Óptimo, quase que gritei, em Sintra, perto do palácio, estaria como se estivesse em casa, de facto, a partida não estava perdida. Se a onda «deles» fosse essa, possuía suficientes recursos para inverter a parada. Mal tinha engatado a terceira quando todas as minhas vãs esperanças se desmoronaram; na rotunda que dava para a vila, como se tivessem desconfiado, haviam tomado a saída da direita, ainda na nacional 9, retomando o percurso para Norte.

Bom deus, onde iriam eles? O pior de tudo era não estar no R6, se estivesse no meu automóvel, o equipamento de GPS rapidamente, ter-me-ia dado as coordenadas de rumo existentes a partir daquele ponto onde me encontrava, só que não era esse o caso, estava no R7 e não tinha GPS, tinha uma luz laranja. Casquinei - tratava-se duma cena à MacGyver.

Puta que parisse a situação; deitava, agora, cada vez mais insistente, olhares quase ou nada furtivos ao mostrador da gasolina. Embraiei a quarta, tentei manter a distância, se me topassem estava tudo acabado, voltei a ligar o rádio, levantei o pé, dei 10 segundos, meti outra vez a terceira, fiz saltar o carburador duplo e, só pela companhia, subi o volume: «De acordo com uma fonte governamental, existem indícios de fugas de informação no Minist»… Desliguei aquela porra.

Tinha de voltar a concentrar-me, tinha de manter a calma, tinha de conduzir, mantendo a distância, o conforto da distância, tinha de estar alerta aos buracos e às curvas, já não falando «deles». Então, curvaram de novo para Leste, afastando-se da via que dava para Sintra, subindo pela direita. Agora, haviam-me fodido, tramado, e bem. Hm. Onde iram? Qual seria a onda deles? Tanto quanto sabia, continuávamos na nacional 9, direcção Norte, isso era um facto, reconhecia os armazéns que ladeavam a estrada. Estávamos na zona industrial do Ral, não gostava daquele sítio, nem de dia me agradava, quanto mais de noite. Só armazéns, naves, negócios import-export manhosos, maquinaria agrícola, adubos, arame farpado, chips, hardware; já de luzes, muito ou muito pouco nada. Caralho - vociferei -, onde iriam «eles»?

Galgávamos quilómetros atrás de quilómetros, estava quilhado, ia ficar apeado no meio de nenhures, só podia, maldita sorte, o que não daria para estar naquele momento na cama da Angélica! Que saudades tinha dela!

16/03/09

Ariel - Capítulo XVII

«Vá, vá, o chefe não gosta de esperar», a montanha de músculos impelia-me, empurrando-me com a mão pesada. Percebendo que não podia oferecer qualquer resistência, não ainda, resignei-me e caminhei à sua frente; seguia-me tão de perto que sentia a respiração pesada arrepiar-me os cabelos do cocuruto. Até a minha sombra tinha dificuldade em arranjar espaço entre nós. Depois de abandonarmos Ariel, seguimos por um corredor ladeado por várias portas. Agora que saíra do quarto, apercebia-me do quão velha a casa era. À medida que caminhávamos, a madeira enegrecida rangia a cada passo e o cheiro a humidade e mofo era de dar a volta ao estômago. Descíamos pé ante pé a escadaria que dava acesso ao andar de baixo quando, de súbito, o pé do brutamontes afundou-se na madeira podre; susteve a respiração com o espanto, abafou um grito e desequilibrou-se sobre mim. Com reflexos felinos, amparei-o com o braço contra o peito e, com a outra mão, crispei o corrimão, evitando o desastre. Senti a coluna estalar sob o peso que se abateu. Antes isso do que se esmagar sobre mim e rolarmos os dois aos trambolhões escadas abaixo. Notando o sangue acorrer-lhe ao focinho de tubarão branco, num misto de embaraço e de fúria, balbuciou uma ordem de avanço. Chegando à base das escadas, passei os olhos com voracidade pelo que me rodeava, numa tentativa de imprimir no cérebro todo o espaço da casa a que tivesse acesso. Alimentava a esperança secreta de me evadir, ainda não sabia como, mas não podia desistir, isso era certo, e todo o conhecimento do terreno que conseguisse obter seria uma ajuda inestimável. Assim que pisei o último degrau, avistei de imediato o pequeno hall e a porta de entrada ou, no meu caso, de saída. À minha direita, havia uma segunda porta, por trás da qual me chegavam vozes abafadas que riam e conversavam animadamente, juntamente com o cheiro a comida. Concluí que ali era a cozinha e, pelo ruído provocado pelas vozes, deviam lá estar dentro uns dois, talvez três homens. Via a minha tarefa cada vez mais dificultada. Sempre instando-me com empurrões nas costas, e eu sempre tentado a abrandar o passo, o Tubarão grunhiu qualquer coisa sobre como me daria um correctivo se continuasse a molengar a passo de lesma. «Por aqui», puxando-me por um braço, afastou-me da porta, circundámos as escadas pela esquerda e entrámos numa sala ampla com largas vidraças. A divisão estava vazia, à excepção dos móveis velhos e bafientos, antigos habitantes daquela casa e testemunhas da sua ruína, semi-cobertos por lençóis amarelecidos pelo tempo. Por todo o lado, ouvia os gemidos e lamentos da casa, dobrando-se sob o seu próprio peso, ameaçando ruir a qualquer momento, como se ela própria implorasse aos ocupantes, numa súplica lúgubre e chorosa, que pusessem cobro ao seu sofrimento.

Envolvido pela atmosfera densa e pelo silêncio sepulcral, estaquei e fiquei a observá-la de costas. Contemplando o exterior, uma mulher com longas cadeias de anéis loiros caindo-lhe sobre os ombros e descendo pelo tronco esguio e elegante levava um cigarro pensativo aos lábios, tragando longas, lentas e angustiadas passas. Decorridos alguns segundos, quando se apercebeu da presença de outras pessoas na mesma divisão, virou-se, esboçou um sorriso malicioso e encurtou o espaço entre nós. Cumprimentou o Tubarão com ar cúmplice, «Acabou-se-me o tabaco. Dás-me um cigarro dos teus, Telma? Hm, Telma… Ajeitou os caracóis loiros, «pensava que não gostavas dos meus, Tubarão» e passou-lhe um cigarro para as mãos. Ele deu-lhe fogo com uma chama gulosa; era agora um tubarão fumegante, «à falta de melhor…», que exalava um intenso odor mentolado. Mentol? Hm… Luzes acenderam-se numa explosão sináptica resplandecente ao inspirar aquele cheiro. Já o sentira antes, não há muito tempo, embora misturado com o cheiro do mar. Onde, onde, onde? Vamos, rapazes, nada de violência. Não vêem que eles estão a colaborar, até saíram do carro, como tão educadamente pedimos. Virou o olhar mordaz para mim e disse-me que, se me portasse bem, tudo acabaria em breve, «além disso…», cedo perdi o interesse nas patacoadas que me dizia e, embora fixo nela, não era o seu rosto pálido que observava. Antes, o meu cérebro mostrava-me imagem atrás de imagem dos acontecimentos da noite passada, como uma sessão de slides. Revivi a minha chegada ao 23, os cheiros, a música, as pessoas. Embora só a tivesse vislumbrado por breves instantes, uma, com o Lúcio, e outra, na mesa com o homem que se ocultava na penumbra, reconheci-a como a loira dessa noite. Lembrei-me de como recuara para a sombra quando, libertando-se do aperto do tal homem que queria permanecer na obscuridade, incógnito, saia do bar, de certeza para me seguir e ao Lúcio. A trama adensava-se. Apesar de ainda não saber quem eram e o que queriam, já começava a fazer sentido de alguns acontecimentos. O facto de o Tubarão e de a mulher estarem no 23 naquela noite, àquela hora, não era uma feliz coincidência; mais, algo cheirava mal no 23: se eles estavam lá, talvez o bar fosse mais do que aparentava à primeira vista, talvez até operassem a partir de lá; mas, o que operavam, não sabia dizer. Além do mais, agora que juntava as peças, invadia-me a sombria sensação de que o homem na penumbra era o chefe desta pandilha, controlando tudo o que se passara nessa noite, resguardado pelas trevas, com os seus olhinhos cintilantes. Como cereja no topo do bolo, Ariel desempenhava, estava convencido, um papel central: ela era o elo de ligação entre esta gente, o 23 e nós, o Lúcio e eu. Porque viera ter connosco? «…não é verdade?», após ter falado durante o que me pareceu horas, Telma interpelou-me, se bem que não tinha ouvido nada de nada. Tinha os olhos vítreos fixos nos dela, mas olhava para o vazio. O Tubarão libertou uma gargalhada sonora que ressoou pela casa, rangendo ainda mais a madeira. Temi que fosse dessa feita que a casa se desmoronasse. «Já viste, Telma, o moço está longe, muito longe. O que o medo não faz a uma pessoa, hã?», e dava asas ao seu gargalhar demente. Telma, porém, perscrutava-me com os seus grandes olhos azuis pestanudos, talhados a gelo, pouco convencida das palavras do cúmplice. Tinha voltado à realidade e enfrentava a sua mirada, porém, tão frio quanto ela, sem querer revelar que começava a apanhar o fio à meada da intriga; vá lá, dava, pelo menos, os primeiros passos. Compreendera que a minha atitude não era alimentada por medo, só que estava na dúvida quanto ao que o meu comportamento significava. Ao contrário do troglodita, Telma tinha dois palmos de testa. Deixei o cérebro em stand-by na Ariel, para retomar o raciocínio mais tarde. Aqueles olhos azuis gelavam-me. Sentia que, se pensasse, ler-me-iam os pensamentos. Foi por isso que não pensei e pedi-lhe, cândido e simples, um cigarro dos seus. Estreitou os olhos num sorriso, apertando os lábios. Reparei que o canto da boca formava uma covinha. Abriu o maço e estendeu-mo, «Vês? Só tenho dezoito, não te posso dar». O outro riu e disse-lhe para não ser má, para dar um ao rapaz, «é bem capaz de ser o último que fuma!», acrescentou, com um laivo de cinismo na voz. Reflectindo um instante, «está bem», tirou um, passou-o lentamente pelo meu rosto até ao canto do lábio e deixou-o lá. Mais rápida do que a própria sombra, sacou de uma pistola minúscula, premiu o gatilho em cheio na minha cara, «bang!», pisquei os olhos, e, com a chama bruxuleante iluminando o olhar azul, aproximou-se e deu-me lume. Ia pegar-lhe na mão para ajeitar a chama às minhas necessidades, mas o Tubarão tratou de me ferrar o pescoço com um calduço, «Psht, não toca!» O cigarro voou da boca. Dobrei as pernas para apanhá-lo, mas Telma esmagou o rolo de menta com o sapato impiedoso. «Chega de fantochadas!» Ainda curvado, olhei para cima. O seu olhar frio revelou-me que não estava de bom humor. «Tubarão, podes ir, ele está à espera». Passou por nós como um foguete; escutei os passos subirem a escada, algumas ofensas ao azelha que havia partido o degrau e o bater furioso de uma porta. «Mulheres! Vá-se lá perceber, não é? Num momento, dão-nos um cigarro e, no outro, tiram-nos o doce da boca». Meneei a cabeça. «Bom!», deu-me mais uma patada nas costas. Fechei os punhos, jurando para mim mesmo que ainda o faria pagar todas aquelas pantufadas. «Vá, anda!» Retomei a marcha, sempre com os dentes do Tubarão nos calcanhares.

Ariel, Ariel, Ariel, os slides continuavam a passar, um por um, à frente dos meus olhos. O que me estava a escapar? O que poderia ela ter, ou eu, ou o Lúcio, que interessasse a estes melros? Reconfigurei. A noite no bar: normal. A viagem até casa: normal (na medida do possível, considerando os excessos da noite). Em minha casa, também não se passara nada de assinalável… infelizmente. Só quando saímos com o carro e chegámos à praia é que… Um momento…! O carro, o R6, sim, claro!, como era mentecapto, um autêntico néscio! O episódio surgiu-me como uma revelação tão óbvia que pouco faltou para bater com a mão na testa. O que é que estás a fazer? Eu tinha razão! Eu… não, nada… nada, reparei que a porta da mala estava mal fechada, estava só a verificar, a fechar melhor... só isso… Antes de sairmos quinta fora no R6, tinha-a apanhado em flagrante delito, remexendo na bagageira. Lembrava-me de ter estudado o interior: papéis espalhados, ferramentas, um colete. Ela estava assustada, muito, demasiado, recordava-me bem, e não se devia à minha agressividade repentina, compreendia isso agora. Procurava algo. O quê? Talvez não, talvez estivesse a esconder alguma coisa, o que não me adiantava muito… Fosse como fosse, uma coisa era certa, Ariel encontrava-se na posse de algo ameaçador o suficiente que justificava darem-se a este trabalho todo para lhe deitarem a unha. Uma vez que ainda estávamos vivos, conclui que não haviam encontrado nada com ela quando a tinham revistado. Logo, o R6 encerrava um segredo a sete chaves e era apenas uma questão de tempo até se aperceberem disso. A minha vida dependia do tempo que conseguisse mantê-los longe do carro. Tinha de ganhar tempo, tinha de enfrentar o interrogatório com o chefe e, de preferência, que fosse uma cavaqueira demorada. Não sabia bem o que esperava alcançar, mas sabia que quanto mais tempo queimasse, mais fácil seria pôr ordem na casa, esfriar as ideias e elaborar um plano de fuga, sim!, fugir, fugir.

Seguro de que tinha descoberto ouro, mas que ainda me faltava um bocado para atingir o filão, deixei de pensar no assunto, reconfortado por, pelo menos, não me encontrar completamente no escuro; ainda assim, não tinha mais por onde continuar. A cabeça começava a latejar outra vez. Apertei as pálpebras sobre os olhos e voltei a subi-las. Tinha fome. Deixei o cérebro adormecer, catatónico, encarregando o Tubarão da tarefa de conduzir o meu corpo até ao destino. Atravessada a divisão ampla, chegámos a uma porta, igual a todas as outras, podre, bafienta e velha. «Queres uma passa antes de entrares?» Peguei no cigarro em silêncio, dei uma, duas longas passas e, a meio da terceira, «Psht, parou! Fumar faz mal», abarbatou-mo das mãos. Abriu a porta com um rangido e, com o pé, «Entra!», empurrou-me para o interior.

15/03/09

Capítulo XVIII

Ora, ao abacaxi com a Angélica, que chatice que era, sentimentalismos pueris como aquele, assaltarem-me sempre nos momentos errados, sempre, tinha mais com que me preocupar, tinha de concentrar-me no presente, o presente, já se afigurava problemático que bastasse, a Angélica que se fodesse, que regressasse ao Ceará, de onde nunca deveria ter saído, decidi. Em simultâneo, ainda de olho no contador da gasosa, suspirei: «ai, ai», a minha brasileirinha, a minha brasileirinha respigada, trigueira, soalheira, temperamental, desbocada, «ai…», estaria melhor na cama dela, sem dúvida que estaria!, contradisse-me. E daí, não, não estaria nada, nada mesmo, estava quase sem gasolina, quilhado de todo, a Angélica, naquela altura do campeonato, era uma asneira, só podia, por que raio me lembrara dela?

«Bobagem, bobagem», desdenhei, trocista, era preciso «me deixar» de brasileirismos, a partir da Angélica, eu próprio o havia assumido depois do vídeo porn que ela me enviara, só passaria pelo meu estreito material luso, quando muito, nórdico, talvez eslavo, indo-europeu, o que fosse, tudo, mas não mais brasileiro, isso é que nunca mais. Puta que parissem as brasileiras, todas as brasileiras não passavam de putas; aliás, todas as mulheres não passavam de putas, menos as nossas mães e as nossas irmãs, essa era a única chatice da coisa. No entanto, como já não tinha nem mãe nem nunca tivera irmãs, do meu lado, a lógica interna do provérbio parecia-me inteiramente válida e lá me consolei da minha alarvidade, retomando o fio do pensamento e procurando deduzir para onde se dirigiam aqueles que eram os responsáveis, não de não estar na cama da Angélica, mas pelo menos e isso era certo de me encontrar ali, madrugada de quinta-feira, três dias pró Natal.

Enquanto serenava, a geografia havia-se alterado e a nacional 9 corria agora por uma recta plana; fiz um rápido cálculo mental e conclui que, se eles seguissem sempre em frente, iriam desembocar, uns trinta quilómetros depois, no nó para a A21. Aí chegados, ponderei, podiam tomar ou a direcção Oeste, para Mafra, Ericeira, ou podiam tomar a direcção Leste, para a Malveira e daí para a A8, para Norte ou, até retroceder para Sul, para Lisboa, completando assim desvio que não me parecia ter cabimento. Fosse como fosse, Oeste ou Leste, nenhuma das duas hipóteses me convinha, ficaria sem sumo, sabia-o, no máximo logo após o nó da A21. Felizmente, rolavam agora em ritmo de cruzeiro e isso adiava-me o problema, embora não por muito tempo, tinha de o admitir.

Entregue às minhas cogitações, fui abruptamente despertado das mesmas quando dois jactos, em voo rasante, passaram na perpendicular à frente «deles» e se foram sumir à direita, desconcertando-me a mim e a «eles» mais ainda, bem feito; de imediato me ocorreu que os dois aviões rasantes não podiam dirigir-se senão para a Base Aérea nº1, nos terrenos da Academia da Força Aérea, ainda nem há dois meses lá estivera, a acompanhar a comitiva do ministro, sim, só podiam ir para a Academia! Desacelerando, verifiquei que, se fizesse um desvio de três, quatro quilómetros, cedendo na perseguição, em menos de cinco minutos estaria aos portões da Base… Só que, mesmo assim, àquela hora seria difícil ter um graduado a quem pudesse explicar o caso em tempo útil, seria quase impossível; contrafeito, coloquei a hipótese de parte. Depois do clarão dos jactos, a noite remetera-se de novo ao seu negrume desolado e continuava sem solução à vista para o meu problema, num beco sem saída, quando topei os outros a fazerem pisca à direita. «Eh lá», refocilei, o caso compunha-se mas, de súbito, vi-me desenganado e levei um dos maiores choques da noite: era uma bomba de gasolina, paravam, eles paravam, para reabastecer, para reabastecer, numa bomba de gasolina!

Não podia estacionar atrás deles naquela estação de serviço, tinha de seguir avante, calquei o pedal e fiz o R7 saltar para frente no seu eixo, se dessem fé do carro… Passei pela bomba e desacelerei de novo, já falhara a saída da Base, aturdido, sem saber o que fazer, rolando a uns 40, 50; se «eles» abasteciam era porque ainda tinham um longo caminho pela frente, ou não, se calhar estavam como eu, na reserva. Porém, ocorreu-me, acalmando-me, que, nesse caso, o destino final daqueles pilantras teria de situar-se para lá do nó da A21 e, pouco antes do nó da A21, tinha a certeza, haveria outra bomba de gasolina… Engatei mudanças em rápida sucessão, terceira, quarta, quinta, 120, 130 140, 150… Liguei os máximos. O rádio, nem que o tivesse planeado me poderia ter instilado mais ânimo: estava sintonizado em Thundestruck, dos AC/DC. Ao fundo da recta passei por uma placa que anunciava encontrar-me em «Cheleiros», seria uma corruptela de «chalaça» - ou de «chaleira» - pouco me importava, para comédia já tinha que me chagasse. A resvalar no macadame fiz ecoar pela dita terriola de casas incaracterísticas o rugido do R7, e, depois, o barulho do choque do lado direito da traseira num marco de correio, ainda a derrapar.

Guinei, contraguinei, reduzi para terceira e preguei a fundo, de novo agarrando o R7 à estrada, fazendo saltar faíscas quando o fundo da carroçaria encontrou os paralelepidos duma lomba; tinha de encontrar uma estação de serviço, não «lhes» levaria mais do que cinco minutos de avanço.

Deixei Cheleiros para trás, vi-me de regresso ao asfalto, meti a quarta, puxei por ela, como se fosse uma gaja, uma das difíceis, puxando-a todinha, e, só então, então fiz saltar a quinta, tric, trac, a esgalhar de fininho. Caramba, contado nem se acredita, quase nem sentia a estrada; nunca me passara pela cabeça que o R7, um carro com 20 anos, ainda pudesse chegar aos 170! Quase de imediato levantei o pé, convinha não abusar, deixei-me ir, a 150, 160. A luz laranja que continuara acesa no indicador do combustível apagou-se, para logo começar a piscar, muito depressa, demasiado depressa. Desengatei e deixei-me ir, a deslizar, sem tracção, aproveitando a quota baixa do caminho e a última longa recta da nacional 9, confiante, sabendo que, em última análise, nunca mais passaria por aquela estrada sem um trejeito de emoção e que, se chegasse a velho, os meus netos por certo apreciariam o episódio. Ao fundo da recta embraiei a quarta, negoceie a curva, passei por uma placa que indicava a aldeia da «Igreja Nova» e, bingo, lá estava ela, que Deus salvasse a rainha! E a British Petroleum! Um pouco antes da rotunda, que dava acesso ao nó da A21, avistara o placard luminoso, verde e amarelo, de uma BP, de uma BP 24 horas!

Ao ralenti, saí da minha faixa e enfiei na da estação de serviço, já o motor do R7 tossicava, soluçando, de forma alarmante; no sítio que me convinha, com um toque no travão, assertivo, imobilizei-o, rodei a chave e silenciei a viatura, seguro de que o meu timmming fora perfeito. Reanimado, soltei o cinto de segurança, saltei para fora do R7, saquei da pistola do diesel, à punhada fiz voar a tampa exterior do depósito da gasosa, rodei a interior, lesto, abri e comecei a despejar quilómetros para dentro do depósito. O pior é que este parecia não ter fundo, embora eu ainda tivesse tempo, ou pelo menos era nisso que desejava acreditar. Virando-me, contemplei a «box» onde se efectuava o pagamento de combustível. No interior, vislumbrei um funcionário da BP, um miúdo, parecia ensonado. Sempre a despejar quilómetros para o depósito do R7, com a mão livre esbracejei na direcção dele, mas nada feito, parecia dormitar. Esbracejei de novo e acompanhei a minha bizarra mímica com uns berros de «Eh, eh pá! Aqui, aqui!, anda cá!, depressa pá!» Por fim, despertou e pôs-se a contemplar-me, do interior da «box», desconfiado. Que aquele tarefeiro de merda se fodesse, cismei, já tinha quarenta litros no depósito, continuava a contar, quando, pelo canto do olho, vi passar, em rápida sucessão, o Alfa Spider, o Miura Branco e o meu R6! Não havia um segundo a perder, tirei a pistola do depósito, cerrei este último, corri para o volante, bati a porta, dei à ignição, tinha de despachar-me. No R6, naquele instante em que passara por mim, no banco de trás, parecera-me topar uma mancha encarnada; só podiam ter sido os cabelos ruivos dela, da Ariel.

Claro que, para chatear, o R7 não pegava, recusava colaborar. O miúdo da BP saíra acicatado da «box» e corria para mim, vociferando, batendo no capôt do R7: «Ei, tem de pagar, tem de pagar!» Com uma última viragem do pulso, acutilante, rodei à chave e num estampido ensurdecedor lá peguei o R7. Engatei a primeira, dei gás, roufenho, mamutesco, fazendo o puto assustar-se e recuar, quase lhe engolindo as pernas com a óptica, que me esquecera de apagar. Vendo-o amerdejado, uma mistura de medo, de amarelo, e de algo de que por certo ele se envergonharia muito em breve, pisei a pé fundo, desengatando, ao mesmo tempo que descia o vidro e o interrogava, abrupto: «Telemóvel, tens telemóvel?» Estacou, atónito, percebi que ia para balbuciar «que não», que «não tinha», mas antecipei-me e, marcando o rodado dos pneus carecas no solo, abri dali para fora, saudando-o, pela fresta da janela: «Feliz Natal, feliz natal, manda a conta à bófia!»

«Do mal o menos», reflecti, assim que me vi na N9, todavia casquinando; nem 50 metros à frente, o R6, no complemento da caravana dos meliantes, negociava a rotunda, tal como previra antes, iam direitinhos para o nó da A21 e eu, ala, na cola deles, depósito quase atestado. E havia mais, havia melhor: o «puto», lá atrás, já deveria estar colado ao telefone da «box», avisando as autoridades, dando-lhes a matrícula do R7, remetendo-as na minha própria peugada, o que, afinal, não deixava de ser conveniente. Negociei por meu turno a rotunda, passei pela placa que dizia Malveira/A8 e só entrei, reduzindo a custo, não fossem eles desenvolverem um sexto sentido despropositado, na segunda virada, direcção Ericeira/Mafra. Com que então os meninos iam para a praia, ou será que iriam antes para o Convento?

Nem dois quilómetros depois, tomaram a saída para Mafra, estava (parcialmente), explicado o mistério, não iam para longe, não iriam para muito mais longe, naquele momento, tratava-se de manter a calma e começar a programar o olhinho para uma cabine telefónica, era o que era. Entrámos na vila, «eles» mais ligeiros, eu mais descontraído, toda a tensão avolumada dera cabo de mim mas ainda conduzia sem falhas. Em menos de nada passávamos pelo Convento, os seus dois imponentes torreões barrocos ladeando a comprida fachada principal, o granito brilhando no reflexo dos faróis rococó. Ali, sabia-o bem, passara muito do essencial da literatura portuguesa do final do séc. XX. Nem mais, passara um memorial, mais do que um convento, passara um memorial e agora passava eu; aliás, recordei, só na Biblioteca do Convento de Mafra repousavam mais de quarenta mil in-fólios, valiosíssimos, com encadernações de couro gravadas a ouro, iluminados, sabedoria a rodos, embora nenhuma que me pudesse ser de utilidade para a circunstância em agravo. Que merda, e eu que sempre gostara de livros, até mesmo dos calhamaços da faculdade de agronomia!

A vila, o convento, a passagem e esses devaneios, entretanto, ficaram para trás. Irredutivelmente, «eles», em cruzeiro, seguiam ainda, desta feita numa estrada secundária, direcção norte, nordeste. Então, o R6 e os outros ligaram o pisca esquerdo, desaceleram e cortaram, devagar, por um caminho de terra batida. Apaguei as luzes, dei 10 segundos e meti atrás deles. Estava escuro, muito. Como pontos de referência apenas tinha as luzes das traseiras «deles», mas não fazia mal, rodavam devagar, a 20, 30, no máximo. O caminho apresentava-se sinuoso, ladeado por uma vegetação frondosa que obscurecia quase tudo; por fim, reparei que estacavam e segui-lhes o exemplo. Porque diabos teriam parado? Ter-me-iam topado? Duvidoso, tomara suficientes precauções. Na penumbra, percebi ao fundo os contornos de um muro e os dum portão, um portão automático, que se abria, lentamente, metódico. Depois, vi os três automóveis que me precediam passarem por ele e o portão a fechar-se, sempre automático, tínhamos chegado ao destino.

Suspirei de alívio, sentindo que do corpo me escorria um enorme peso. Procurei um cigarro, não encontrei e pus o R7 a trabalhar, tentando, sem pressas, decidir o que fazer. Liguei os mínimos, fui deslizando, buraco ante buraco, até passar pelo portão e estacionar 50 metros mais à frente, subindo uma colina baldia onde julgava poder ter uma vista mais abrangente sobre o meu objectivo designado. Desliguei o carro, fui para me erguer, mas já não tinha forças para tanto e voltei a abater-me sobre o assento.

Dei fé de que estava de rastos, de que precisava de descansar; já nem era tensão, era mesmo consumição, fim, interregno, fim, princípio, meio, mulher ruiva, necessitava de descanso, um ‘cadinho que fosse. Só 5 minutos, só 5 minutos, Lúcio, ainda murmurei, nem mais, nem menos, esgotado. A cabeça pendia-me no cabedal do banco do R7, pesada. Fechei os olhos, desliguei o rádio e abençoei o mergulho que dei em direcção à inconsciência.

14/03/09

Ariel - Capítulo XIX

«Entra!» Apanhado de surpresa com o pontapé do famigerado Tubarão, tropecei nos pés e estatelei-me de cara no chão. Uma voz agradeceu e a porta fechou-se atrás de mim com suavidade. Afinal, quando queriam, os tubarões sabiam ter tacto. Saboreei o pó e o mofo, «argh!», o estômago contraiu-se num resmungo grave e deixei-me estar, por momentos, esperando para ver se não havia mais nenhum esperto a querer deitar-me ao tapete quando me tentasse levantar. O silêncio instalou-se. Só a casa se lamentava num gemido compreensivo. Sentei-me no chão, toquei no nariz dorido, até então intacto, verificando se continuava encaixado no sítio, e obriguei as pernas a erguerem o corpo. Olhei em volta e reparei que estava no que parecia ser uma antiga biblioteca ou escritório. Rodando a cabeça da esquerda para a direita, observei que uma das paredes parecia feita só de prateleiras poeirentas que, outrora, deviam ter segurado livros. Continuando a inspeccionar a divisão, vi que as restantes paredes estavam desoladoramente despidas, com frestas aqui e ali. Percebi que deviam usar aquela casa para as suas festas privadas.

Com o pescoço a rodar lentamente como um periscópio, a minha curiosidade embateu num homem… espera… Era antes um bicho estranho… não, tratava-se, de facto, de um homem junto a uma secretária e de costas para a janela, embora o seu aspecto pudesse enganar um observador menos atento. Coçava a barba castanha e hirsuta com um «scratch, scratch» indolente, ignorando de propósito a minha presença, até que, pelo canto do olho, mirou-me com olhinhos maus, pequeninos e brilhantes, parou de raspar as unhas na barba de arame e, com ar de quem foi apanhado na retrete com as calças arreadas, estirou as sobrancelhas espessas e desgrenhadas sobre os olhos, ficando aparentemente tão cego como um cão d’água, se bem que, pelo cheiro que emanava, sobrepondo-se até ao mofo e à humidade, não devia partilhar o mesmo gosto pelo H2O. Por instantes, tive saudades do cheiro a humidade. Percebendo que o avaliava, revelou-se susceptível, resfolegou, mostrou-me os dentinhos de rato, aguçados, salientes, abjectos, e rosnou. Esta não era, sem dúvida, a imagem que pintara na minha cabeça daquela voz fria e calma que, na treva da noite, mandara enfiarem a Ariel no carro e darem-me uns valentes tabefes, «Por favor, perdoe a rudeza do meu empregado». Surpreendido, torci o pescoço para a direita, em direcção ao outro canto da sala. Era a voz, sim, aquela voz! Associada a ela, estava um corpo alto e forte, envergando um fato negro. As mãos robustas, mas delicadas, remexiam num pequeno armário; retirou uma garrafa, despejou o conteúdo num copo e, empregando um tom que pretendia ser caloroso, enquanto enroscava a tampa, voltou a esfriar a sala com a voz, «Carece de alguma subtileza, mas é extremamente eficiente. Só lhe falta ladrar», declarou, casquinando. O outro não tugiu nem mugiu. «Engraçado, estava a pensar no mesmo», concordei, sem reflectir no aperto em que me encontrava, esbugalhando os olhos e levando mentalmente uma mão à boca. E foi uma. O tipo deu uma passada na minha direcção, pelos vistos ofendido e sem poder descarregar no chefe, afilando os incisivos, com as patorras erguidas, mas estacou no mesmo instante em que este aclarou a garganta. «Calma, calma, Jonas». O sabugo retraiu as presas finas e porcas, fitando-me, famélico, com um sorriso trocista, como que me dizendo que a minha hora chegaria. Inspirei fundo e expirei vapor; percebendo que estava gelado, esfreguei os braços. «Sente-se, sente-se, não fique de pé». À ordem do chefe, encaminhei-me, zombificado, expectante do desfecho da minha ‘entrevista’, para a cadeira que estava em frente da secretária, com os dentes a bater como castanholas descontroladas, num misto de medo e frio. Contraí o maxilar até o músculo latejar e pus fim àquele baque-baque. Era o momento de manter uma certa calma.

Ninguém dizia palavra. À minha esquerda, Jonas, já esquecido do agravo, retomara a monótona tarefa de coçar a barba e, sem qualquer discrição, espetou um dedo gorduroso que levou à narina e escarafunchou, retirando dessa actividade um prazer visivelmente enorme, como as sobrancelhas erguidas mo revelavam. Desviei os olhos, enojado. À minha direita, a sinfonia do vidro de garrafas e copos cessou com o bater da porta do armário. O tipo de fato, o chefe, como era óbvio, reconheceria aquela voz em qualquer lado, deu um trago, fez «nham, nham» com os lábios, «Bem!», e rodou sobre os calcanhares, dirigindo-se para a cadeira, muito mais confortável, com estofos almofadados, daquelas giratórias, do outro lado da secretária, num andar elegante e descontraído, exalando confiança a cada um dos seus passos leves sobre os sapatos negros e polidos; em pequenos, lentos, movimentos de pulso, agitava o copo com subtileza, fazendo-o tilintar com as pedras de gelo. Era ele quem dava as ordens por ali e sabia-o bem. A pele de bebé e tez clara contrastavam com a película de surro e a barba negra do roedor imundo. O cabelo impecavelmente penteado, sem um fio fora da linha, denunciava um homem eficiente e metódico. Se não fosse por me encontrar naquela situação, toda aquela cena até teria o seu encanto pitoresco. Tanto foi, que não consegui reprimir uma ligeira tensão dos lábios. Colocou o copo sobre o tampo, ao lado, notei, de um panamá bege, torneado por uma fita azul-escuro. Estranhei o facto. Um panamá? No Inverno? Passou a mão pela gravata, sentou-se, puxando ligeiramente as calças vincadas, e cruzou a perna. Em seguida, molhou os lábios com a bebida (whisky, pareceu-me) e tossicou. Decidido a levar o seu tempo, ajeitou o nó sobre o colarinho da camisa azul clara e verificou se o alfinete de gravata dourado estava no sítio. Uma flor na lapela ficava-lhe a matar, pensei, tentando abstrair-me daquela realidade, fazendo o possível para não transparecer nervosismo. Naquele jogo, sangue frio era essencial. Recostei-me na cadeira, simplesmente à espera. O tabuleiro estava pronto e, uma vez que jogava com as pretas, restava-me preparar a defesa.

«Bem… bem, bem…», repetia, como se pensasse no que dizer, enquanto tirava do bolso do casaco uma longa boquilha branca de marfim; encaixou um cigarro e sacou de um isqueiro prateado. Soltou uma longa baforada, degustando-a. «Dormiu bem? Espero que já esteja recuperado de ontem. Esse olho negro está com péssimo aspecto. Veja só como está inchado», informou-me do facto, simulando um tom admirado e preocupado, ao mesmo tempo que estreitava os olhos, como que para ver melhor. «Sim… sim… Ah!» Levou a mão ao interior do casaco e logo fechei as mãos sobre os joelhos, o corpo todo tenso, uma arma!, mas o tipo só segurava a carteira, a minha carteira, e começou a vasculhar. «Ora, então, deixa lá ver…», falava com os seus botões, mas pretendia desestabilizar-me antes de me tirar nabos da púcara. É sempre mais fácil desenrolar a língua a nabos nervosos. «Cartão multibanco, dum restaurante… sim, sim…», sussurrava apenas o suficiente para ser audível, absorto, enquanto tirava da carteira, um por um, fleumático, estudando-os com curiosidade diletante, os cartões; quando perdia o interesse, com dedos ágeis que terminavam em unhas meticulosamente limadas, lançava-os e passava ao próximo. Demorava-se a observar cada um. Ali estava um homem com todo o tempo do mundo.

O silêncio perdurava há uns minutos, apenas entrecortado pela cavernosa e pontual fungadela do Jonas, que passava a manga do casaco pelo focinho. Em sintonia, o chefe e eu encarámo-lo com o mesmo ar nauseado. Não teria saído melhor se o tivéssemos combinado. Sem me conseguir conter, porém, com um sorriso amarelo, tirei um pacote de lenços do bolso da camisa e estendi-lho. O imbecil passava os olhinhos pequenos e esféricos de mim para o chefe e do chefe para mim com surpresa e hesitação, com cara de quem nunca fora objecto de um gesto de gentileza. Agitando a mão, encorajava-o a aceitar. Compelido pelo chefe, «Aceita, aceita, que já estou farto de te ouvir fungar!», o tipo arrancou-me os lenços com um golpe de mão relutante, mas agressivo, estreitando os dentes esverdeados do tabaco. Queria manter o ascendente sobre mim. «Ena, ena, é sócio do Belenenses?», interpelou-me o outro, de imediato, sem me deixar acumular muita confiança. «Não deve ter muitas razões para festejar», chutou. «Hm… sim, sim», concordei com um aceno de cabeça, à espera de ver como se desenrolaria a situação. «Talvez um dia…» «Sim, sim, talvez um dia… Oh!», exclamou, abrindo os olhos, enternecido, «Que bonitinha!», já focado noutro objecto, uma foto; virou-a para o outro. «É bonita, não é, Jonas?» «É, sim, chefe!», o fuinha seboso concordava com meneios de cabeça curtos e rápidos. «É sua?» Virou o retrato para mim, em que figurava eu e um bebé de três anos. Meio embasbacado por toda aquela cena, respondi que não, que era a minha sobrinha. «Ah, estou a ver, eu também tenho duas sobrinhas. Adoro crianças… Gostas de crianças, Jonas?» «Gosto, sim, chefe!», sempre meneando a cabeça. «Amanhã, fiquei de levá-las ao zoo, adoram a bicharada…», disse, com um sorriso distante, numa voz enlevada de ternura; olhava a fotografia com ar sonhador. «Pois é, pois é… bem!», e retomou a revista dos conteúdos. Observava-o na sua tarefa, sem me distrair, sempre à espera que lançasse as perguntas importantes; ele movimentava as peças como que preparando o xeque-mate. «Ah!, cá está!», exclamou, com um sorriso afável. Segurava a minha carta de condução. «Benjamin Hel Castro Ribeiro». Lançou o lábio inferior para a frente, enrugando o queixo proeminente, e torceu o nariz. «Não que seja da minha conta, mas posso saber de onde desencantou um nome tão curioso?» Inclinou-se do lado de lá da secretária, observando-me com um sorriso e uma expressão de imensa curiosidade. Sem me deixar surpreender pela questão, tão fora de contexto quanto as outras, larguei os joelhos, encostei-me no espaldar de madeira e, colocando os cotovelos sobre os apoios para os braços, cruzei os dedos sobre a barriga. Expliquei-lhe que a minha mãe era inglesa, «Deveras? E o Hel?», e que tinha ascendência árabe. «Ah, curioso, estou a ver, estou a ver». Atirou a carta de condução para cima da mesa com um gesto de mão displicente e prosseguiu. «Então, Benjamin, a razão por que o chamei aqui», tamborilava os dedos pensativos na mesa de madeira, «posso tratá-lo por Benjamin?», perguntou, cortês. Aquiesci, «claro, claro»; embora não gostasse que me tratassem pelo meu nome de baptismo, não estava em posição de lhe negar isso, ou o que quer que fosse. «Benjamin…», retomou, «diga-me, gosta de ir ao cinema?», disparou. Erguendo as sobrancelhas até à linha do cabelo, não consegui esconder a surpresa, «Como?», julgando não ter ouvido bem. Ignorou. «Eu adoro ir ao cinema. Vou todas as segundas, o bilhete é mais barato». Fixei-o sem expressão; corri os olhos, para ser exacto, pelo fatinho Armani que envergava até aos botões de punho em ouro e ónix; todavia, concordei plenamente, comentando, com sarcasmo desdenhoso e irreflectido, que «o cinema está pela hora da morte». E foram duas. Notei a troca de olhares que o canalha do Jonas trocou com o dono, como que perguntando, ávido, «e agora, chefe, posso, posso?», mas, com o mesmo olhar conivente, negou-lhe o gosto de me dar umas bofetadas, pelo menos, por enquanto. Jonas retraiu as dentuças. «Isto está difícil para todos, meu caro, para todos», retorquiu, sorrindo, em ironia descontraída, sempre bom camarada. «Aprecio muito um filme inglês, o… Snatch, com mafiosos do sub mundo londrino. Tem um humor soberbo. Mas não me recordo do título em português». Recostou-se e olhou para o tecto, fazendo um esforço para se lembrar. Reparei que tinha o tique de mexer o lábio inferior em movimentos curtos sempre que pensava. Ou isso, ou não era mais do que o personagem que desempenhava. «Conhece?», virou o olhar para mim. «Não… Não conheço…», forcei o meu tom mais casual, «não sou adepto de mafiosos. Prefiro comédias». «Não conhece?...», escondeu-se por trás do seu sorrisinho cínico e cortês. «Jonas, conheces o filme?» «Conheço, sim, chefe!» «Qual era o título, mesmo?» Espiei o cretino do Jonas pelo canto do olho. Espremendo toda a sua concentração e forçando a testa até ficar mais enrugada do que uma passa de Ano Novo, pensou, e pensou, e pensou, até que, iluminando a cara borbulhenta, explodiu numa exclamação entusiasmada, «é o Porcos e Diamantes, chefe!», contorcendo o rosto numa expressão de orgulho nos seus assombrosos dotes de memória. «Isso!», o chefe estalou os dedos, «Isso, o Porcos e Diamantes!», e voltou a girar a cadeira para mim. «Gosto particularmente de uma passagem do chefe dos bandidos naquele momento em que explica aos três pretos como se devem livrar dum corpo sem deixar pistas». De súbito, o rosto escureceu e fechou-se numa expressão de pedra. Os lábios começaram a recitar: consta que o melhor é cortar um corpo em seis pedaços. Depois, ouvi dizer que se deve dá-los aos porcos. É preciso fazê-los passar fome por uns dias; então, até um cadáver às postas vai lhes parecer um manjar. Têm de rapar a cabeça da vítima e arrancar-lhe os dentes, para não atrapalhar a digestão dos bichinhos. Precisam de pelo menos dezasseis porcos para fazerem o trabalho de uma assentada, por isso, fiquem longe de homens com quintas de porcos. Cortam osso como se fosse manteiga e devoram um corpo com 90 quilos em cerca de oito minutos, o que significa que cada porco consome mais de um quilo de carne crua por minuto; daí a expressão "ganancioso como um porco". Quando terminou, continuava a perscrutar-me com gelo nas órbitas. «É mais ou menos isto, mais porco, menos porco…» Deixando-me afectar, por fim, comecei a sentir-me desconfortável e mexi-me na cadeira. Tinha a garganta seca. Farejando a minha fraqueza com aquele narizinho húmido e ranhoso, o fuinha do Jonas acercou-se de mim e colocou-me uma mão no ombro. Olhei para ela, estremecendo perante aquelas unhas roídas e o cheiro rançoso. Percebendo o meu nervosismo, as linhas do rosto afrouxaram e soltou uma longa gargalhada mais falsa do que Judas, exibindo os dentes brancos e arrumadinhos, incitando-me a descontrair. «Devia ver o ar dos pretos a quem ele diz isto. Olhe, é exactamente a cara que está a fazer agora!», e ria, divertido. Jonas juntava-se a ele, sem saber bem, desconfiava, o motivo da risota. «Para ser sincero consigo, não sei se é verdade, nunca tentei. Sou mais adepto do clássico de enfiá-los num carro e largar-lhes fogo», confessou, ainda rindo, «mas um dia destes, ainda tento», acrescentando que não me preocupasse com isso. «Sim, aqui somos todos amigos, não somos, Jonas?» «Somos, sim, chefe!», papagueou, apertando-me o trapézio. Encolhi. «Enfim, divago, perdoe-me, estou a desperdiçar o seu tempo. Vamos ao que interessa: de onde conhece a mulher?», disparou, sem papas na língua. Apercebendo-se de que durante a arenga do filme o cigarro se consumira, acendeu um de enrolar. Vinquei a fronte numa mirada intrigada, sem conseguir esconder a curiosidade. «Ah!, servi-me do seu tabaco de enrolar. Era o que eu fumava na minha juventude», acrescentou, num trejeito nostálgico, e ajeitou-se no assento. O verdadeiro interrogatório estava prestes a começar.

Ariel - Capítulo I

Tinha bebido imenso, bagaço, vinho tinto, aguardente velha, eu sei lá! Sentia-me perdido, sim, um tanto ou quanto fora de mim, confesso; con...