14/03/09

Ariel - Capítulo XIX

«Entra!» Apanhado de surpresa com o pontapé do famigerado Tubarão, tropecei nos pés e estatelei-me de cara no chão. Uma voz agradeceu e a porta fechou-se atrás de mim com suavidade. Afinal, quando queriam, os tubarões sabiam ter tacto. Saboreei o pó e o mofo, «argh!», o estômago contraiu-se num resmungo grave e deixei-me estar, por momentos, esperando para ver se não havia mais nenhum esperto a querer deitar-me ao tapete quando me tentasse levantar. O silêncio instalou-se. Só a casa se lamentava num gemido compreensivo. Sentei-me no chão, toquei no nariz dorido, até então intacto, verificando se continuava encaixado no sítio, e obriguei as pernas a erguerem o corpo. Olhei em volta e reparei que estava no que parecia ser uma antiga biblioteca ou escritório. Rodando a cabeça da esquerda para a direita, observei que uma das paredes parecia feita só de prateleiras poeirentas que, outrora, deviam ter segurado livros. Continuando a inspeccionar a divisão, vi que as restantes paredes estavam desoladoramente despidas, com frestas aqui e ali. Percebi que deviam usar aquela casa para as suas festas privadas.

Com o pescoço a rodar lentamente como um periscópio, a minha curiosidade embateu num homem… espera… Era antes um bicho estranho… não, tratava-se, de facto, de um homem junto a uma secretária e de costas para a janela, embora o seu aspecto pudesse enganar um observador menos atento. Coçava a barba castanha e hirsuta com um «scratch, scratch» indolente, ignorando de propósito a minha presença, até que, pelo canto do olho, mirou-me com olhinhos maus, pequeninos e brilhantes, parou de raspar as unhas na barba de arame e, com ar de quem foi apanhado na retrete com as calças arreadas, estirou as sobrancelhas espessas e desgrenhadas sobre os olhos, ficando aparentemente tão cego como um cão d’água, se bem que, pelo cheiro que emanava, sobrepondo-se até ao mofo e à humidade, não devia partilhar o mesmo gosto pelo H2O. Por instantes, tive saudades do cheiro a humidade. Percebendo que o avaliava, revelou-se susceptível, resfolegou, mostrou-me os dentinhos de rato, aguçados, salientes, abjectos, e rosnou. Esta não era, sem dúvida, a imagem que pintara na minha cabeça daquela voz fria e calma que, na treva da noite, mandara enfiarem a Ariel no carro e darem-me uns valentes tabefes, «Por favor, perdoe a rudeza do meu empregado». Surpreendido, torci o pescoço para a direita, em direcção ao outro canto da sala. Era a voz, sim, aquela voz! Associada a ela, estava um corpo alto e forte, envergando um fato negro. As mãos robustas, mas delicadas, remexiam num pequeno armário; retirou uma garrafa, despejou o conteúdo num copo e, empregando um tom que pretendia ser caloroso, enquanto enroscava a tampa, voltou a esfriar a sala com a voz, «Carece de alguma subtileza, mas é extremamente eficiente. Só lhe falta ladrar», declarou, casquinando. O outro não tugiu nem mugiu. «Engraçado, estava a pensar no mesmo», concordei, sem reflectir no aperto em que me encontrava, esbugalhando os olhos e levando mentalmente uma mão à boca. E foi uma. O tipo deu uma passada na minha direcção, pelos vistos ofendido e sem poder descarregar no chefe, afilando os incisivos, com as patorras erguidas, mas estacou no mesmo instante em que este aclarou a garganta. «Calma, calma, Jonas». O sabugo retraiu as presas finas e porcas, fitando-me, famélico, com um sorriso trocista, como que me dizendo que a minha hora chegaria. Inspirei fundo e expirei vapor; percebendo que estava gelado, esfreguei os braços. «Sente-se, sente-se, não fique de pé». À ordem do chefe, encaminhei-me, zombificado, expectante do desfecho da minha ‘entrevista’, para a cadeira que estava em frente da secretária, com os dentes a bater como castanholas descontroladas, num misto de medo e frio. Contraí o maxilar até o músculo latejar e pus fim àquele baque-baque. Era o momento de manter uma certa calma.

Ninguém dizia palavra. À minha esquerda, Jonas, já esquecido do agravo, retomara a monótona tarefa de coçar a barba e, sem qualquer discrição, espetou um dedo gorduroso que levou à narina e escarafunchou, retirando dessa actividade um prazer visivelmente enorme, como as sobrancelhas erguidas mo revelavam. Desviei os olhos, enojado. À minha direita, a sinfonia do vidro de garrafas e copos cessou com o bater da porta do armário. O tipo de fato, o chefe, como era óbvio, reconheceria aquela voz em qualquer lado, deu um trago, fez «nham, nham» com os lábios, «Bem!», e rodou sobre os calcanhares, dirigindo-se para a cadeira, muito mais confortável, com estofos almofadados, daquelas giratórias, do outro lado da secretária, num andar elegante e descontraído, exalando confiança a cada um dos seus passos leves sobre os sapatos negros e polidos; em pequenos, lentos, movimentos de pulso, agitava o copo com subtileza, fazendo-o tilintar com as pedras de gelo. Era ele quem dava as ordens por ali e sabia-o bem. A pele de bebé e tez clara contrastavam com a película de surro e a barba negra do roedor imundo. O cabelo impecavelmente penteado, sem um fio fora da linha, denunciava um homem eficiente e metódico. Se não fosse por me encontrar naquela situação, toda aquela cena até teria o seu encanto pitoresco. Tanto foi, que não consegui reprimir uma ligeira tensão dos lábios. Colocou o copo sobre o tampo, ao lado, notei, de um panamá bege, torneado por uma fita azul-escuro. Estranhei o facto. Um panamá? No Inverno? Passou a mão pela gravata, sentou-se, puxando ligeiramente as calças vincadas, e cruzou a perna. Em seguida, molhou os lábios com a bebida (whisky, pareceu-me) e tossicou. Decidido a levar o seu tempo, ajeitou o nó sobre o colarinho da camisa azul clara e verificou se o alfinete de gravata dourado estava no sítio. Uma flor na lapela ficava-lhe a matar, pensei, tentando abstrair-me daquela realidade, fazendo o possível para não transparecer nervosismo. Naquele jogo, sangue frio era essencial. Recostei-me na cadeira, simplesmente à espera. O tabuleiro estava pronto e, uma vez que jogava com as pretas, restava-me preparar a defesa.

«Bem… bem, bem…», repetia, como se pensasse no que dizer, enquanto tirava do bolso do casaco uma longa boquilha branca de marfim; encaixou um cigarro e sacou de um isqueiro prateado. Soltou uma longa baforada, degustando-a. «Dormiu bem? Espero que já esteja recuperado de ontem. Esse olho negro está com péssimo aspecto. Veja só como está inchado», informou-me do facto, simulando um tom admirado e preocupado, ao mesmo tempo que estreitava os olhos, como que para ver melhor. «Sim… sim… Ah!» Levou a mão ao interior do casaco e logo fechei as mãos sobre os joelhos, o corpo todo tenso, uma arma!, mas o tipo só segurava a carteira, a minha carteira, e começou a vasculhar. «Ora, então, deixa lá ver…», falava com os seus botões, mas pretendia desestabilizar-me antes de me tirar nabos da púcara. É sempre mais fácil desenrolar a língua a nabos nervosos. «Cartão multibanco, dum restaurante… sim, sim…», sussurrava apenas o suficiente para ser audível, absorto, enquanto tirava da carteira, um por um, fleumático, estudando-os com curiosidade diletante, os cartões; quando perdia o interesse, com dedos ágeis que terminavam em unhas meticulosamente limadas, lançava-os e passava ao próximo. Demorava-se a observar cada um. Ali estava um homem com todo o tempo do mundo.

O silêncio perdurava há uns minutos, apenas entrecortado pela cavernosa e pontual fungadela do Jonas, que passava a manga do casaco pelo focinho. Em sintonia, o chefe e eu encarámo-lo com o mesmo ar nauseado. Não teria saído melhor se o tivéssemos combinado. Sem me conseguir conter, porém, com um sorriso amarelo, tirei um pacote de lenços do bolso da camisa e estendi-lho. O imbecil passava os olhinhos pequenos e esféricos de mim para o chefe e do chefe para mim com surpresa e hesitação, com cara de quem nunca fora objecto de um gesto de gentileza. Agitando a mão, encorajava-o a aceitar. Compelido pelo chefe, «Aceita, aceita, que já estou farto de te ouvir fungar!», o tipo arrancou-me os lenços com um golpe de mão relutante, mas agressivo, estreitando os dentes esverdeados do tabaco. Queria manter o ascendente sobre mim. «Ena, ena, é sócio do Belenenses?», interpelou-me o outro, de imediato, sem me deixar acumular muita confiança. «Não deve ter muitas razões para festejar», chutou. «Hm… sim, sim», concordei com um aceno de cabeça, à espera de ver como se desenrolaria a situação. «Talvez um dia…» «Sim, sim, talvez um dia… Oh!», exclamou, abrindo os olhos, enternecido, «Que bonitinha!», já focado noutro objecto, uma foto; virou-a para o outro. «É bonita, não é, Jonas?» «É, sim, chefe!», o fuinha seboso concordava com meneios de cabeça curtos e rápidos. «É sua?» Virou o retrato para mim, em que figurava eu e um bebé de três anos. Meio embasbacado por toda aquela cena, respondi que não, que era a minha sobrinha. «Ah, estou a ver, eu também tenho duas sobrinhas. Adoro crianças… Gostas de crianças, Jonas?» «Gosto, sim, chefe!», sempre meneando a cabeça. «Amanhã, fiquei de levá-las ao zoo, adoram a bicharada…», disse, com um sorriso distante, numa voz enlevada de ternura; olhava a fotografia com ar sonhador. «Pois é, pois é… bem!», e retomou a revista dos conteúdos. Observava-o na sua tarefa, sem me distrair, sempre à espera que lançasse as perguntas importantes; ele movimentava as peças como que preparando o xeque-mate. «Ah!, cá está!», exclamou, com um sorriso afável. Segurava a minha carta de condução. «Benjamin Hel Castro Ribeiro». Lançou o lábio inferior para a frente, enrugando o queixo proeminente, e torceu o nariz. «Não que seja da minha conta, mas posso saber de onde desencantou um nome tão curioso?» Inclinou-se do lado de lá da secretária, observando-me com um sorriso e uma expressão de imensa curiosidade. Sem me deixar surpreender pela questão, tão fora de contexto quanto as outras, larguei os joelhos, encostei-me no espaldar de madeira e, colocando os cotovelos sobre os apoios para os braços, cruzei os dedos sobre a barriga. Expliquei-lhe que a minha mãe era inglesa, «Deveras? E o Hel?», e que tinha ascendência árabe. «Ah, curioso, estou a ver, estou a ver». Atirou a carta de condução para cima da mesa com um gesto de mão displicente e prosseguiu. «Então, Benjamin, a razão por que o chamei aqui», tamborilava os dedos pensativos na mesa de madeira, «posso tratá-lo por Benjamin?», perguntou, cortês. Aquiesci, «claro, claro»; embora não gostasse que me tratassem pelo meu nome de baptismo, não estava em posição de lhe negar isso, ou o que quer que fosse. «Benjamin…», retomou, «diga-me, gosta de ir ao cinema?», disparou. Erguendo as sobrancelhas até à linha do cabelo, não consegui esconder a surpresa, «Como?», julgando não ter ouvido bem. Ignorou. «Eu adoro ir ao cinema. Vou todas as segundas, o bilhete é mais barato». Fixei-o sem expressão; corri os olhos, para ser exacto, pelo fatinho Armani que envergava até aos botões de punho em ouro e ónix; todavia, concordei plenamente, comentando, com sarcasmo desdenhoso e irreflectido, que «o cinema está pela hora da morte». E foram duas. Notei a troca de olhares que o canalha do Jonas trocou com o dono, como que perguntando, ávido, «e agora, chefe, posso, posso?», mas, com o mesmo olhar conivente, negou-lhe o gosto de me dar umas bofetadas, pelo menos, por enquanto. Jonas retraiu as dentuças. «Isto está difícil para todos, meu caro, para todos», retorquiu, sorrindo, em ironia descontraída, sempre bom camarada. «Aprecio muito um filme inglês, o… Snatch, com mafiosos do sub mundo londrino. Tem um humor soberbo. Mas não me recordo do título em português». Recostou-se e olhou para o tecto, fazendo um esforço para se lembrar. Reparei que tinha o tique de mexer o lábio inferior em movimentos curtos sempre que pensava. Ou isso, ou não era mais do que o personagem que desempenhava. «Conhece?», virou o olhar para mim. «Não… Não conheço…», forcei o meu tom mais casual, «não sou adepto de mafiosos. Prefiro comédias». «Não conhece?...», escondeu-se por trás do seu sorrisinho cínico e cortês. «Jonas, conheces o filme?» «Conheço, sim, chefe!» «Qual era o título, mesmo?» Espiei o cretino do Jonas pelo canto do olho. Espremendo toda a sua concentração e forçando a testa até ficar mais enrugada do que uma passa de Ano Novo, pensou, e pensou, e pensou, até que, iluminando a cara borbulhenta, explodiu numa exclamação entusiasmada, «é o Porcos e Diamantes, chefe!», contorcendo o rosto numa expressão de orgulho nos seus assombrosos dotes de memória. «Isso!», o chefe estalou os dedos, «Isso, o Porcos e Diamantes!», e voltou a girar a cadeira para mim. «Gosto particularmente de uma passagem do chefe dos bandidos naquele momento em que explica aos três pretos como se devem livrar dum corpo sem deixar pistas». De súbito, o rosto escureceu e fechou-se numa expressão de pedra. Os lábios começaram a recitar: consta que o melhor é cortar um corpo em seis pedaços. Depois, ouvi dizer que se deve dá-los aos porcos. É preciso fazê-los passar fome por uns dias; então, até um cadáver às postas vai lhes parecer um manjar. Têm de rapar a cabeça da vítima e arrancar-lhe os dentes, para não atrapalhar a digestão dos bichinhos. Precisam de pelo menos dezasseis porcos para fazerem o trabalho de uma assentada, por isso, fiquem longe de homens com quintas de porcos. Cortam osso como se fosse manteiga e devoram um corpo com 90 quilos em cerca de oito minutos, o que significa que cada porco consome mais de um quilo de carne crua por minuto; daí a expressão "ganancioso como um porco". Quando terminou, continuava a perscrutar-me com gelo nas órbitas. «É mais ou menos isto, mais porco, menos porco…» Deixando-me afectar, por fim, comecei a sentir-me desconfortável e mexi-me na cadeira. Tinha a garganta seca. Farejando a minha fraqueza com aquele narizinho húmido e ranhoso, o fuinha do Jonas acercou-se de mim e colocou-me uma mão no ombro. Olhei para ela, estremecendo perante aquelas unhas roídas e o cheiro rançoso. Percebendo o meu nervosismo, as linhas do rosto afrouxaram e soltou uma longa gargalhada mais falsa do que Judas, exibindo os dentes brancos e arrumadinhos, incitando-me a descontrair. «Devia ver o ar dos pretos a quem ele diz isto. Olhe, é exactamente a cara que está a fazer agora!», e ria, divertido. Jonas juntava-se a ele, sem saber bem, desconfiava, o motivo da risota. «Para ser sincero consigo, não sei se é verdade, nunca tentei. Sou mais adepto do clássico de enfiá-los num carro e largar-lhes fogo», confessou, ainda rindo, «mas um dia destes, ainda tento», acrescentando que não me preocupasse com isso. «Sim, aqui somos todos amigos, não somos, Jonas?» «Somos, sim, chefe!», papagueou, apertando-me o trapézio. Encolhi. «Enfim, divago, perdoe-me, estou a desperdiçar o seu tempo. Vamos ao que interessa: de onde conhece a mulher?», disparou, sem papas na língua. Apercebendo-se de que durante a arenga do filme o cigarro se consumira, acendeu um de enrolar. Vinquei a fronte numa mirada intrigada, sem conseguir esconder a curiosidade. «Ah!, servi-me do seu tabaco de enrolar. Era o que eu fumava na minha juventude», acrescentou, num trejeito nostálgico, e ajeitou-se no assento. O verdadeiro interrogatório estava prestes a começar.

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