29/04/09

Ariel - Capítulo VII

A 20 de Dezembro, quatro dias para o Natal, foram-me concedidas as férias pelas quais há muito insistia, o meu chefe apertara-me a mão e dissera-me, roufenho, seco: «Lúcio, faz seis meses que está na casa, não se esqueça do que lhe digo, escute que talvez lhe venha a ser útil, na nossa profissão há muito mais a esconder do que a plantar. Muito menos couves, repolhos, tomates ou pepinos, não se esqueça disso, meu caro engenheiro Ferro, aprecie as suas férias».

Embora não fosse a primeira vez que o chefe me falava não gostei lá muito do que dissera, havia demasiados assuntos particulares em jogo; não me podia dar ao luxo de perder aquele posto e sobretudo não queria arranjar sarilhos com o meu velhote nem, muito menos, colocar em causa o seu próprio prestígio individual junto das altas esferas, pelo que optei por replicar: «Que achou da reunião, senhor director, esta história - dos aviões e das armas - pareceu-lhe a sério?..»

Acusou, como estava certo de que o faria, a estocada, e reiterou-me, como também sabia que o faria, que não era da minha conta, apenas estava ali para informar o «assessor do ministro dos internos». Claro, assenti, não éramos tolos, não fora por acaso que o meu velhote me financiara férias profissionais pagas em Inglaterra (belo do velhote), em parte a suas próprias expensas, ou favores; fora para me treinar para aquele tipo de momento, ou assim o desejava pensar. De vez em quando dava-me para isso. Fora, sim, fora.

Entretanto, a entrevista esmorecera ao ponto da trivialidade de sala. Percebendo-o, perfilei-me, apresentei as minhas saídas e educadamente virei as costas ao chefe. No seu canto, o colega da secretaria de Estado, todo ufanado da burocracia política que o levara ao poder, com um gesto simpático, deu oficialmente por finda a «reunião», também me desejou «uma boa quadra» e conduziu-me à porta. Lisonjeado pela sua deferência rasteira, saudei-o de maneira cortês - à inglesa –, e saí. No fim de contas, já tinha entrado de férias, tinha uma semana só para mim. Evitei o elevador, fui descendo as escadas, ponderando as opções: talvez uma estirada a Castelo de Bode, talvez um bom banho de imersão, talvez outra coisa. Depois logo decidia.

Quando abandonei o edifício da Cidade Judiciária e me encaminhei para o R6 percebi que chuviscava no parque exterior onde estacionara a viatura, uma chuva miúda, chuva molha tolos, o que até me convinha, não tinha pressa alguma e o meu propósito não favorecia testemunhas, inocentes ou não. Contente pela chuva, pela noite, pela semana de férias, abri a bagageira e levantei o tapete. No espaço entre a roda sobresselente e a caixa de transmissão do R6, como quem não quer a coisa, a fazer que olhava para os lados, depositei os documentos, o telemóvel, tendo o cuidado de o desligar. Hesitei, mas acabei também por guardar ali a pistola, esta carregada e no respectivo coldre. Cobri tudo com o tapete, alisei-o, com o comando tranquei a mala. Sentindo as gotas da chuva engrossarem de intensidade apressei-me a entrar no R6; a apreciar plenamente a sensação de conforto e de segurança que o seu habitat proporcionava.

Satisfeito com a minha situação na ordem natural das coisas, encapsulei-me, liguei a aparelhagem, sintonizei Tom Waits e arranquei suavemente da sede do serviço até Lisboa, em ritmo de cruzeiro, bordejando o rio, aqui e ali evitando os escolhos do trânsito. Ia ter com o Hel ao meu bar de eleição, a meio caminho entre a minha casa e o rio, o que me convinha; por outro lado, ia ter com o Hel mas também ia à procura de fêmeas, nem todos os dias é Natal.

Ao entrar na Baixa conduzia ligeiro por entre os buracos que, constava, remontavam à época pombalina. O trânsito intensificara-se, a chuva também. Ainda na noite anterior tinha estacionado o R6 em contra-mão, nas traseiras do ministério, só porque me apetecera e porque ninguém me chateava, pelo menos não chateavam funcionários com cartão ministeriável. Podia usá-lo nesta situação outra vez. Podia, ainda melhor, estacionar na garagem e refazer parte do trajecto a pé; apenas não podia dar nas vistas, o que resumia tudo.

Encontrei um lugar exactamente no sítio que me convinha, parara de chover. Despi a gabardine, saí do carro, tranquei a porta e quedei-me a apreciar o perfume do sucesso novinho em folha, o aço, a borracha molhada do belíssimo R6. Sorri. Tinha sido um presente do meu pai pelo meu último êxito reportado junto dos Estrangeiros (tudo mentira, embora bem orquestrada). Sucedera com a ajuda dum putativo candidato a Presidente da República, deputado, barbudo, conhecido do meu velhote dos anos de luta em Coimbra, enfim, um contacto, um dos notáveis que ele conhecia e que estivera presente na reunião em que se falara da revolta dos professores, outro tema quente do dia. Esbocei um trejeito ao recordar a expressão do primeiro-ministro quando o meu secretário de Estado mencionara “tráfico de armas”, “implicações políticas”, insinuando nas entrelinhas que possuía “inteligência” de que o golpe se efectuava com a colaboração de elementos “doutra nacionalidade”, nomeadamente um tal de Pedro, Pacheco, e ainda Pimentel, ligado aos americanos e do qual eu fingira nada saber, embora isso não viesse para o caso.

«Quanto menos souberes, melhor para ti», esse era o meu mote e raramente dele me desviava, a não ser à noite. A bem dizer, nada do que respeitava ao ministério me dizia um “ui”; estava perto dum clube que me seduzia pelas mulheres e que me agradava pelo companheirismo. E depois, o R6 estava suficientemente longe para não ter de me preocupar com isso, muito menos com os documentos na bagageira.

O que queria mesmo era divertir-me, desligar-me, despossuir-me, esquecer o ministério duma vez. Decidi compartimentar a mente, evitar de todo as intrigas, os jogos, as manhas, os méritos e desméritos do ministério. Em menos de nada, a passo estugado, dera comigo à porta do clube. Tinha chegado, estava no 23.

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