15/03/09

Capítulo XVIII

Ora, ao abacaxi com a Angélica, que chatice que era, sentimentalismos pueris como aquele, assaltarem-me sempre nos momentos errados, sempre, tinha mais com que me preocupar, tinha de concentrar-me no presente, o presente, já se afigurava problemático que bastasse, a Angélica que se fodesse, que regressasse ao Ceará, de onde nunca deveria ter saído, decidi. Em simultâneo, ainda de olho no contador da gasosa, suspirei: «ai, ai», a minha brasileirinha, a minha brasileirinha respigada, trigueira, soalheira, temperamental, desbocada, «ai…», estaria melhor na cama dela, sem dúvida que estaria!, contradisse-me. E daí, não, não estaria nada, nada mesmo, estava quase sem gasolina, quilhado de todo, a Angélica, naquela altura do campeonato, era uma asneira, só podia, por que raio me lembrara dela?

«Bobagem, bobagem», desdenhei, trocista, era preciso «me deixar» de brasileirismos, a partir da Angélica, eu próprio o havia assumido depois do vídeo porn que ela me enviara, só passaria pelo meu estreito material luso, quando muito, nórdico, talvez eslavo, indo-europeu, o que fosse, tudo, mas não mais brasileiro, isso é que nunca mais. Puta que parissem as brasileiras, todas as brasileiras não passavam de putas; aliás, todas as mulheres não passavam de putas, menos as nossas mães e as nossas irmãs, essa era a única chatice da coisa. No entanto, como já não tinha nem mãe nem nunca tivera irmãs, do meu lado, a lógica interna do provérbio parecia-me inteiramente válida e lá me consolei da minha alarvidade, retomando o fio do pensamento e procurando deduzir para onde se dirigiam aqueles que eram os responsáveis, não de não estar na cama da Angélica, mas pelo menos e isso era certo de me encontrar ali, madrugada de quinta-feira, três dias pró Natal.

Enquanto serenava, a geografia havia-se alterado e a nacional 9 corria agora por uma recta plana; fiz um rápido cálculo mental e conclui que, se eles seguissem sempre em frente, iriam desembocar, uns trinta quilómetros depois, no nó para a A21. Aí chegados, ponderei, podiam tomar ou a direcção Oeste, para Mafra, Ericeira, ou podiam tomar a direcção Leste, para a Malveira e daí para a A8, para Norte ou, até retroceder para Sul, para Lisboa, completando assim desvio que não me parecia ter cabimento. Fosse como fosse, Oeste ou Leste, nenhuma das duas hipóteses me convinha, ficaria sem sumo, sabia-o, no máximo logo após o nó da A21. Felizmente, rolavam agora em ritmo de cruzeiro e isso adiava-me o problema, embora não por muito tempo, tinha de o admitir.

Entregue às minhas cogitações, fui abruptamente despertado das mesmas quando dois jactos, em voo rasante, passaram na perpendicular à frente «deles» e se foram sumir à direita, desconcertando-me a mim e a «eles» mais ainda, bem feito; de imediato me ocorreu que os dois aviões rasantes não podiam dirigir-se senão para a Base Aérea nº1, nos terrenos da Academia da Força Aérea, ainda nem há dois meses lá estivera, a acompanhar a comitiva do ministro, sim, só podiam ir para a Academia! Desacelerando, verifiquei que, se fizesse um desvio de três, quatro quilómetros, cedendo na perseguição, em menos de cinco minutos estaria aos portões da Base… Só que, mesmo assim, àquela hora seria difícil ter um graduado a quem pudesse explicar o caso em tempo útil, seria quase impossível; contrafeito, coloquei a hipótese de parte. Depois do clarão dos jactos, a noite remetera-se de novo ao seu negrume desolado e continuava sem solução à vista para o meu problema, num beco sem saída, quando topei os outros a fazerem pisca à direita. «Eh lá», refocilei, o caso compunha-se mas, de súbito, vi-me desenganado e levei um dos maiores choques da noite: era uma bomba de gasolina, paravam, eles paravam, para reabastecer, para reabastecer, numa bomba de gasolina!

Não podia estacionar atrás deles naquela estação de serviço, tinha de seguir avante, calquei o pedal e fiz o R7 saltar para frente no seu eixo, se dessem fé do carro… Passei pela bomba e desacelerei de novo, já falhara a saída da Base, aturdido, sem saber o que fazer, rolando a uns 40, 50; se «eles» abasteciam era porque ainda tinham um longo caminho pela frente, ou não, se calhar estavam como eu, na reserva. Porém, ocorreu-me, acalmando-me, que, nesse caso, o destino final daqueles pilantras teria de situar-se para lá do nó da A21 e, pouco antes do nó da A21, tinha a certeza, haveria outra bomba de gasolina… Engatei mudanças em rápida sucessão, terceira, quarta, quinta, 120, 130 140, 150… Liguei os máximos. O rádio, nem que o tivesse planeado me poderia ter instilado mais ânimo: estava sintonizado em Thundestruck, dos AC/DC. Ao fundo da recta passei por uma placa que anunciava encontrar-me em «Cheleiros», seria uma corruptela de «chalaça» - ou de «chaleira» - pouco me importava, para comédia já tinha que me chagasse. A resvalar no macadame fiz ecoar pela dita terriola de casas incaracterísticas o rugido do R7, e, depois, o barulho do choque do lado direito da traseira num marco de correio, ainda a derrapar.

Guinei, contraguinei, reduzi para terceira e preguei a fundo, de novo agarrando o R7 à estrada, fazendo saltar faíscas quando o fundo da carroçaria encontrou os paralelepidos duma lomba; tinha de encontrar uma estação de serviço, não «lhes» levaria mais do que cinco minutos de avanço.

Deixei Cheleiros para trás, vi-me de regresso ao asfalto, meti a quarta, puxei por ela, como se fosse uma gaja, uma das difíceis, puxando-a todinha, e, só então, então fiz saltar a quinta, tric, trac, a esgalhar de fininho. Caramba, contado nem se acredita, quase nem sentia a estrada; nunca me passara pela cabeça que o R7, um carro com 20 anos, ainda pudesse chegar aos 170! Quase de imediato levantei o pé, convinha não abusar, deixei-me ir, a 150, 160. A luz laranja que continuara acesa no indicador do combustível apagou-se, para logo começar a piscar, muito depressa, demasiado depressa. Desengatei e deixei-me ir, a deslizar, sem tracção, aproveitando a quota baixa do caminho e a última longa recta da nacional 9, confiante, sabendo que, em última análise, nunca mais passaria por aquela estrada sem um trejeito de emoção e que, se chegasse a velho, os meus netos por certo apreciariam o episódio. Ao fundo da recta embraiei a quarta, negoceie a curva, passei por uma placa que indicava a aldeia da «Igreja Nova» e, bingo, lá estava ela, que Deus salvasse a rainha! E a British Petroleum! Um pouco antes da rotunda, que dava acesso ao nó da A21, avistara o placard luminoso, verde e amarelo, de uma BP, de uma BP 24 horas!

Ao ralenti, saí da minha faixa e enfiei na da estação de serviço, já o motor do R7 tossicava, soluçando, de forma alarmante; no sítio que me convinha, com um toque no travão, assertivo, imobilizei-o, rodei a chave e silenciei a viatura, seguro de que o meu timmming fora perfeito. Reanimado, soltei o cinto de segurança, saltei para fora do R7, saquei da pistola do diesel, à punhada fiz voar a tampa exterior do depósito da gasosa, rodei a interior, lesto, abri e comecei a despejar quilómetros para dentro do depósito. O pior é que este parecia não ter fundo, embora eu ainda tivesse tempo, ou pelo menos era nisso que desejava acreditar. Virando-me, contemplei a «box» onde se efectuava o pagamento de combustível. No interior, vislumbrei um funcionário da BP, um miúdo, parecia ensonado. Sempre a despejar quilómetros para o depósito do R7, com a mão livre esbracejei na direcção dele, mas nada feito, parecia dormitar. Esbracejei de novo e acompanhei a minha bizarra mímica com uns berros de «Eh, eh pá! Aqui, aqui!, anda cá!, depressa pá!» Por fim, despertou e pôs-se a contemplar-me, do interior da «box», desconfiado. Que aquele tarefeiro de merda se fodesse, cismei, já tinha quarenta litros no depósito, continuava a contar, quando, pelo canto do olho, vi passar, em rápida sucessão, o Alfa Spider, o Miura Branco e o meu R6! Não havia um segundo a perder, tirei a pistola do depósito, cerrei este último, corri para o volante, bati a porta, dei à ignição, tinha de despachar-me. No R6, naquele instante em que passara por mim, no banco de trás, parecera-me topar uma mancha encarnada; só podiam ter sido os cabelos ruivos dela, da Ariel.

Claro que, para chatear, o R7 não pegava, recusava colaborar. O miúdo da BP saíra acicatado da «box» e corria para mim, vociferando, batendo no capôt do R7: «Ei, tem de pagar, tem de pagar!» Com uma última viragem do pulso, acutilante, rodei à chave e num estampido ensurdecedor lá peguei o R7. Engatei a primeira, dei gás, roufenho, mamutesco, fazendo o puto assustar-se e recuar, quase lhe engolindo as pernas com a óptica, que me esquecera de apagar. Vendo-o amerdejado, uma mistura de medo, de amarelo, e de algo de que por certo ele se envergonharia muito em breve, pisei a pé fundo, desengatando, ao mesmo tempo que descia o vidro e o interrogava, abrupto: «Telemóvel, tens telemóvel?» Estacou, atónito, percebi que ia para balbuciar «que não», que «não tinha», mas antecipei-me e, marcando o rodado dos pneus carecas no solo, abri dali para fora, saudando-o, pela fresta da janela: «Feliz Natal, feliz natal, manda a conta à bófia!»

«Do mal o menos», reflecti, assim que me vi na N9, todavia casquinando; nem 50 metros à frente, o R6, no complemento da caravana dos meliantes, negociava a rotunda, tal como previra antes, iam direitinhos para o nó da A21 e eu, ala, na cola deles, depósito quase atestado. E havia mais, havia melhor: o «puto», lá atrás, já deveria estar colado ao telefone da «box», avisando as autoridades, dando-lhes a matrícula do R7, remetendo-as na minha própria peugada, o que, afinal, não deixava de ser conveniente. Negociei por meu turno a rotunda, passei pela placa que dizia Malveira/A8 e só entrei, reduzindo a custo, não fossem eles desenvolverem um sexto sentido despropositado, na segunda virada, direcção Ericeira/Mafra. Com que então os meninos iam para a praia, ou será que iriam antes para o Convento?

Nem dois quilómetros depois, tomaram a saída para Mafra, estava (parcialmente), explicado o mistério, não iam para longe, não iriam para muito mais longe, naquele momento, tratava-se de manter a calma e começar a programar o olhinho para uma cabine telefónica, era o que era. Entrámos na vila, «eles» mais ligeiros, eu mais descontraído, toda a tensão avolumada dera cabo de mim mas ainda conduzia sem falhas. Em menos de nada passávamos pelo Convento, os seus dois imponentes torreões barrocos ladeando a comprida fachada principal, o granito brilhando no reflexo dos faróis rococó. Ali, sabia-o bem, passara muito do essencial da literatura portuguesa do final do séc. XX. Nem mais, passara um memorial, mais do que um convento, passara um memorial e agora passava eu; aliás, recordei, só na Biblioteca do Convento de Mafra repousavam mais de quarenta mil in-fólios, valiosíssimos, com encadernações de couro gravadas a ouro, iluminados, sabedoria a rodos, embora nenhuma que me pudesse ser de utilidade para a circunstância em agravo. Que merda, e eu que sempre gostara de livros, até mesmo dos calhamaços da faculdade de agronomia!

A vila, o convento, a passagem e esses devaneios, entretanto, ficaram para trás. Irredutivelmente, «eles», em cruzeiro, seguiam ainda, desta feita numa estrada secundária, direcção norte, nordeste. Então, o R6 e os outros ligaram o pisca esquerdo, desaceleram e cortaram, devagar, por um caminho de terra batida. Apaguei as luzes, dei 10 segundos e meti atrás deles. Estava escuro, muito. Como pontos de referência apenas tinha as luzes das traseiras «deles», mas não fazia mal, rodavam devagar, a 20, 30, no máximo. O caminho apresentava-se sinuoso, ladeado por uma vegetação frondosa que obscurecia quase tudo; por fim, reparei que estacavam e segui-lhes o exemplo. Porque diabos teriam parado? Ter-me-iam topado? Duvidoso, tomara suficientes precauções. Na penumbra, percebi ao fundo os contornos de um muro e os dum portão, um portão automático, que se abria, lentamente, metódico. Depois, vi os três automóveis que me precediam passarem por ele e o portão a fechar-se, sempre automático, tínhamos chegado ao destino.

Suspirei de alívio, sentindo que do corpo me escorria um enorme peso. Procurei um cigarro, não encontrei e pus o R7 a trabalhar, tentando, sem pressas, decidir o que fazer. Liguei os mínimos, fui deslizando, buraco ante buraco, até passar pelo portão e estacionar 50 metros mais à frente, subindo uma colina baldia onde julgava poder ter uma vista mais abrangente sobre o meu objectivo designado. Desliguei o carro, fui para me erguer, mas já não tinha forças para tanto e voltei a abater-me sobre o assento.

Dei fé de que estava de rastos, de que precisava de descansar; já nem era tensão, era mesmo consumição, fim, interregno, fim, princípio, meio, mulher ruiva, necessitava de descanso, um ‘cadinho que fosse. Só 5 minutos, só 5 minutos, Lúcio, ainda murmurei, nem mais, nem menos, esgotado. A cabeça pendia-me no cabedal do banco do R7, pesada. Fechei os olhos, desliguei o rádio e abençoei o mergulho que dei em direcção à inconsciência.

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